Fig. 1 Natália Brescancini, Sem título, Série “indeterminación”, 2015. Brasil.

 

 

 mirar(nos)otras”: o desenho como ação e dispositivo de arte relacional

Look at (Us/Each) Other: Drawing as Action and Practice of Relational Art

 

 

Natália Fernandes Brescancini

Universidad  Complutense,  Madrid (España)

nabrescan@gmail.com

https://orcid.org/0000-0002-4041-246X

 

 

 

 


Resumen

Este estudo propõe discutir o desenho como ação, o (auto)retrato como dispositivo de arte relacional a partir de uma reflexão sobre as ações realizadas dentro do projetomirar(nos) otras”. Trata-se de uma proposta de exposição/ intervenção/ação que ocorre em um espaço de encontro feminista na cidade de Madrid em 2019, experimento que forma parte de um projetode pesquisa de Pós-Doutorado,realizadocom apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES). A partir da apresentação do processo de criação da proposta, seus antecedentes e desdobramentos, discute-se a possibilidade de encontro por meio da experiência estética e do processo de construção de imagens, tratando-se também de uma de investigação dos modos e espaços de resistência e criação de novas subjetividades encontrados por mulheres diversas.

Palavras-chave: desenho; performance; arte de ação; arte relacional; arte e feminismo; retrato.


Abstract

This article intends to discuss design as an action, the self-portrait as a practice of relational art mechanism based on reflected actions carried out in the project “Mirar(nos)tras” (“Look at (Us/Each) Other”). This proposal is an exhibit/intervention/actions that took place in a setting where feminists meet in Madrid in 2019. This experiment is part of a postdoctoral research project that is implemented with the assistance of Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, Brasil (CAPES). (Coordination of Improvement of Higher Education Personnel). Originating from the introduction of the proposal, from its background and developments. It discusses the possibility of encountering through the aesthetic experience and the process of image construction, as well as the ways and spaces of resistance and creation of new subjectivity found by diverse women.

Keywords: design; performance; action art; relational art; art and feminism; portrait.

 

Este artigo foi elaborado como parte do projeto de pesquisa de Pós-DoutoradoRepresentação e ação: investigação dos modos de construção de subjetividades na produção de mulheres artistas contemporâneas”, financiado pela CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior / Programa de Pós-Doutorado no Exterior, Brasília, Brasil.

 

Cómo citar este trabajo / How to cite this paper:

Fernandes Brescancini, Natália. “‘mirar(nos)otras’: o desenho como ação e dispositivo de arte relacional.” En No solo musas. Mujeres creadoras en el arte iberoamericano. Monográfico Atrio 1, editado por Eunice Miranda Tapia, 142-55. Sevilla: Universidad Pablo de Olavide, Atrio, 2019.

© 2019 Natália Fernandes Brescancini. Este es un artículo de acceso abierto distribuido bajo los términos de la licencia Creative Commons Attribution-NonCommercial-ShareAlike 4.0. International License (CC BY-NC-SA 4.0).



 

 

Introdução

O trabalho desenvolvido com autorretrato desde 2008, em uma investigação de representações de si e do corpo feminino por meio da pintura levou, em 2012, a um projeto de Doutorado em Artes Visuais, na linha de pesquisa de Poéticas Visuais, finalizado na tese de título: ENTRELINHAS DO CORPO [NO ESPELHO]: meios, referências e estímulos do processo de criação autorreferente.

 

A partir de uma investigação do processo dos autorretratos em pintura, e do encontro com a filosofia existencialista de Simone de Beauvoir e reflexões no campo da História da Arte Feminista, defendeu-se a tese de que o autorretrato, ou a produção autorreferente de mulheres artistas, trata de um lugar de encontro com outro: trata-se de criar, a partir da observação de si, ‘outras’ imagens do feminino, em um compromisso ético e estético com a formação de um imaginário para os corpos femininos produzido desde perspectivas femininas/feministas.

 

A produção artística, plástica e visual se desenvolveu e desenvolve principalmente por meio da pintura, desenho, fotografia e livros de artista. Paralelamente, atuo em coletivos artísticos interlinguagens, trabalhando com intervenção urbana e performance com artistas da dança, teatro e música desde 2015.

 

A produção dos autorretratos dentro do atelier e a atuação como performer nos coletivos seguiram como investigações e produções paralelas até que em 2017 proponho um projeto de Pós-Doutorado no qual pretendo investigar, no diálogo com mulheres artistas e pesquisadoras contemporâneas na Espanha, como representação e ação se conectam na produção contemporânea de mulheres artistas, discutindo a autorreferência desde uma perspectiva de gênero e diversidade. Trata-se de um projeto realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES). O projeto está em execução em Madrid, sob supervisão do Prof. Dr. Mariano de Blas, da Faculdad de Bellas Artes da Universidad Complutense de Madrid. A pesquisa ocorre entre diversas experiências de produção artística (e parcerias), entrevistas com artistas e participação em grupos de pesquisa na universidade.

 

Em Madrid, em um bairro de imigrantes, existe um espaço gerido pelo município, dedicado ao ‘Encuentro Feminista’. Esse espaço possui atividades diversas, culturais inclusive, onde participam e atuam mulheres do bairro (vecinas) em diversos grupos com propostas e/ ou funcionamento próprios. Muitas e diversas atividades em torno da discussão de gênero, do combate à violência machista e integração entre mulheres de diferentes origens e culturas. Neste espaço proponho uma exposição/intervenção/ação dentro de uma sala de atividades do local, uma sala ampla com espelhos também muito amplos.

 

Representação a ação

Compreendi o autorretrato na minha produção, ao longo do Doutorado e dos últimos anos, como meu encontro com o outro por meio das representações de si, em um inevitável processo de ‘afastamento’ entre eu-modelo, sujeito-objeto.1 Nesta perspectiva, a busca e encontro com o outro estão contemplados no próprio processo de criação de imagens autorreferen- tes, contemplados pela criação de imagens e representações do corpo feminino. Conhecer e reconhecer a produção autorreferente de mulheres artistas ao longo da História da Arte me permite, ainda, ‘pertencer’: encontro um novo universo de discussões e procedimentos com os quais me identifico mais profundamente, permitindo ampliar minha reflexão sobre a própria produção e reconhecer com mais clareza aspectos sociais e políticos que envolvem o trabalho com a representação do corpo feminino (o meu trabalho). Entre a experiência individual e o desejo pelo ‘universal’ na arte, encontro a produção das mulheres artistas, nossas experiências atravessadas pela construção do gênero, nossas histórias, nossos temas e enfrentamentos, nossas estratégias e metodologias.

 

Trabalho com a criação de autorretratos em diversos meios das artes visuais: pintura, desenho, fotografia, livros de artista. Em meio à investigação do autorretrato, realizei diversos experimentos com desenho em diferentes suportes, inclusive sobre espelhos e vidros.

 

as experimentações com intervenção, dentro de coletivos artísticos, se pautaram na criação de dispositivos de interação com o público, em estratégias mais ou menos sutis, e por vezes silenciosas, de aproximação e estabelecimento de relações interpessoais poéticas. O encontro com as pessoas em espaços públicos nas cidades de Santos e São Paulo, em diversas ocasiões, foi mediado por diferentes estratégias e elementos das linguagens artísticas, tais como: mapeamentos; instalação de imagens, textos, materiais e objetos; troca e coleta de poemas; criação e ampliação de ambientes sonoros, investigação do movimento no contato com materiais, etc. Trata-se de intervenções onde aspectos das linguagens artísticas se tornam dispositivos relacionais, modos de estar com o outro, recriando espaços públicos, ressignificando-os a partir do encontro e da criação coletiva. Nas propostas desenvolvidas pelos coletivos, as questões de gênero e de criação de imagens do feminino não são centrais, apesar de estarem presentes no meu processo de criação e colaboração dentro deles.

 

A atual investigação trata, justamente, de pensar e propor a ação e os dispositivos relacionais com a perspectiva de gênero em foco, em uma busca pelo NÓS, as mulheres artistas, NÓS, as mulheres; mulheres que nos reunimos e criamos formas de resistência juntas; mulheres que imaginamos e experimentamos a criação de outras subjetividades e modos de vida por meio da arte. Mulheres diversas em (des)encontros que questionam e tensionam nossolugar social’, hierarquias e comportamentos naturalizados em uma sociedade capitalista patriarcal que começa a sentir nossa presença, pressão e insubmissão; que começa a ser contaminada por nossas narrativas, desejos, olhares.

 

 

 

A ação - mirar(nos)otras

Observando o espaço, a sala de espelhos, proponho sua ocupação com fotografias onde investiguei relações entre corpo, natureza e espelho. Reúno duas séries de trabalhos, indeterminación (2015), fig. 1 e organismos (2019), figs. 2 e 3.

 

Fig. 2 Natália Brescancini, Sem título, Série “organismos”, 2019. Madrid, España.

 

Planejo, além da exposição, uma intervenção por meio de uma ação de desenho: proponho a criação de retratos e autorretratos diretamente no espelho da sala. Retratos das mulheres que frequentam o espaço, plasmando no espelho sua presença, nossa presença, nossos olhares; trata-se de criar outras possibilidades de interação e de ocupação do lugar, em um reconhecimento e celebração da diversidade; outras formas de mirar(nos) e reconhecer(nos), a nós mesmas e umas às outras.

 

A proposta, uma ação por meio do desenho, é uma experiência de aproximação entre desenho e ‘arte de ação’, e dialoga com o desejo de encontro com A outrA de maneira mais concreta, no estabelecimento de relações interpessoais que possibilitarão a realização do desenho.

 

Desenhar sobre o espelho me interessa pois existe umadistância’ entre o reflexo e o registro/desenho: buscando registrar o reflexo dos corpos por meio de linhas diretamente sobre o espelho, percebe-se que a imagem especular se forma no fundo do espelho, enquanto o registro se realiza na superfície do vidro. Existe uma distância, um descolamento que geraalém de uma linha dupla, pelo reflexo no espelho da linha registrada em sua superfície—, uma distorção na imagem na medida em que o olho transita entre os dois planos constantemente, ajustando e reajustando o foco enquanto a linha corre sobre a superfície. Esses desencontros, ‘distorções’ das imagens me interessam: nos encontramos na fissura, na brecha, no inesperado, no espaço entre.

 

Existe uma falsa sensação, ou expectativa, de que ao desenhar sobre o espelho esse seja um facilitador na criação de uma imagem mais descritiva e talvez realista, sendo o desenho um registro da imagemprojetada’. Não é o que ocorre e é essa surpresa —tanto para artista como para as ‘modelos’2— que abre uma nova possibilidade de ser e estar juntas.

 

Neste processo a ‘modelotambém se observa, e observa a construção da imagem. O espelho torna-se um mediador de nosso encontro: a vejo através do reflexo e ela se , me e o desenho surgir, simultaneamente. Nossos olhares se cruzam no espelho e o desenho os conduz.

 

O desenho é realizado sobre o reflexo que vejoeu, quem desenha— e, por uma diferença de pontos de vista, não corresponde ao reflexo que veem as mulheres retratadas que, muitas vezes, se buscam no espelho e no desenho, movem-se tentando provocar a coincidência de nossos olhares. Algumas mulheres seguem a linha com o corpo, buscandoentrar’ no retrato; outras se encantam ao reconhecerem-se ali e vejo sua expressão mudar; apresentam maior ou menor dificuldade em observar-se mais longamente sobre o espelho; conseguimos conversar mais ou menos durante o retrato. As reações são muito diversas e, refletindo sobre elas, percebo que realmente se trata de um encontro entre artista-modelo, criadoras da imagem, e de cada uma de nós consigo mesma.

 

Fig. 3. Natália Brescancini, Sem título, Série “organismos”, 2019. Madrid, España.

 

 

 

Desenho e (des)encontro

A cada novo retrato, pedi que as mulheres escolhessem um lugar na sala e se posicionassem, diante do espelho, de maneira confortável. Muitas pedem que eu defina, evitando olhar-se. Inicio então uma conversa sobre o espelho, sobre os reflexos em relação à distância, conduzindo seu olhar sobre si mesmas tratando de questões de linguagem: pontos de vista, dimensão, proporção, distâncias, composição. Nos movemos pelo espaço e observamos os reflexos enquanto conversamos sobre a linguagem visual, sobre a imagem em construção sobre o espelho. E decidem como posicionar-se.

 

Inicio o desenho pelos olhos. E nos observamos, olho no olho (?), através do espelho. O espelho, que a princípio assusta, agora facilita o encontro: o desconforto parece menor do que o que costuma ocorrer em um retrato sobre papel, com a observação direta. Existe uma tranquilidade, para as mulheres, em saber exatamente o que eu observo e registro, em acompanhar (e interferir) a construção do desenho. Depois de um tempo de observação, seu olhar passa a seguir a linha e a ter consciência da imagem como um todo, da representação de seus corpos. também variam muito as reações: encanto, prazer, desencontro, controle, entrega.

 

É nesse processo, que ocorre através do espelho e da observação, e por meio do desenho, que representação e ação se encontram; é nessa construção que nos (des)encontramos. O desenho —o desenho de retrato (fig.4 e 5) e autorretrato (fig.6)— se tornam dispositivos relacionais. Trata-se de um desenho rápido, sintético, de registro. Pensar e propor o desenho como ação, como desenvolvimento de um processo e uma estratégia de ‘desenhartrata também de buscar modos diferentes de perceber e registrar ‘a realidade’, nesse caso especificamente as representações do corpo feminino, mas de forma compartilhada.

 

Em uma investigação sobre o desenho e seus processos de criação, o pesquisador José de Diego trata, a partir do processo de criação de grandesmestres’, do desenho como uma investigação de estratégias que revelam aspectos da realidade para além da aparência, afirmando a perspectiva individual do artista, pela ideia de ‘dibujo interno’:

 

todos ellos confluyen en el develamiento de mundos interiores expresados emocionalmente mediante estrategias personales y específicas que convergen en un diálogo solidario con cada una de las estructuras materiales manifestadas en sus obras.

Son Visiones Interiores que se manifiestan en la percepción clara y cuya intensión es guiada por la necesidad interior de ir más allá de la superficie, de la mera apariencia.3

 

Na proposta de ação pelo desenho aqui apresentada, as mulheres passam a sugerir alterações na imagem, passam a mover-se, mudar a postura corporal, os cabelos, os óculos, interferindo na construção do desenho. Construímos juntas a imagem: o desenho em si mesmo e a imagem que projetam de si. Em um jogo entre o que veem, o que eu vejo, o que gostariam de ver e como querem ser vistas construímos um retrato, uma nova representação em um espaço de cumplicidade e crescente intimidade. Existe uma estratégia prévia, uma proposta que é fruto de uma investigação artística pessoal, mas o desenho acontece no (des)encontro; a estratégia existe para promovê-lo, facilitá-lo, para que ele seja possível por meio da linguagem visual.

 

Assim, proponho o encontro entre representação e ação: o desenho não somente como uma investigação de uma visão interior, de minha própria perspectiva do mundo, mas como potência do (des)encontro, como um processo que permite/facilita um encontro entre perspectivas, experiências, narrativas e desejos  individuais e distintos. Na interação entre artista-modelo, no encontro de nossos olhares e perspectivas, na conversa intimista, se registram as emoções de quem? Visão interior, de mundo, de quem?

 

 

 

 

Fig. 4, 5 e 6. Natália Brescancini, registros da ação de desenho emmirar(nos)otras”, 2019. Retratos em desenho/ autorretrato em fotografia, Madrid, España.

 

Nicolas Bourriaud afirma que a obra de arte contemporânea, mesmo quando um objeto, possui uma relativatransparência social’, que a diferencia de outros produtos da atividade humana. A obra de arte cria um espaço de diálogo, de negociação entre artista e espectador. Quando o próprio processo de construção da obra é também tema, nasce ‘o transparente’ e o valor de intercâmbio da obra, que “lo que el artista produce en primer lugar son relaciones entre las personas y el mundo.”4 A estética relacional trata, assim, de propor a produção artística no âmbito das relações humanas, valorizando a interação e intercâmbio possíveis através da experiência estética, tornando-se uma ferramenta “que permite unir individuos y grupos humanos.”5

 

Essa reflexão, por meio do desenho e da ação, é também uma expansão, transposição de uma inquietação que permeia minha experiência com os feminismosna política, história da arte, na teoria e na própria arte. Quando e onde finalmente nos encontramos? Quais são as estratégias de resistência encontradas nos coletivos de mulheres? Quando experiências e narrativas individuais se tornam mobilizadoras de questionamentos e mo- vimentos coletivos?

 

Não se trata, assim, de negar o lugar de artista, de investigadora, de quem busca expandir sua compreensão da realidade por meio do desenho mas, na aproximação com a performance ou arte de ação, por meio da estética relacional, estar presente, disponível, em construção; uma investigação de si e da realidade que se quer realizar no (des)encontro, na presença da outra, no enfrentamento de nossa diversidade.

 

Propor o retrato como ação é trazer a outra para dentro do processo de construção da imagem, é estabelecer com ela uma comunicação que permitirá a construção de uma imagem única, híbrida, distorcida, efêmera. Uma proposta que nasce de uma trajetória artística e da experiência pessoal como estrangeira na Espanha, de uma busca por conectarse com outras mulheres sem disfarçar nossas diferenças, como modo de celebrar e compreender nossa diversidade, de fortalecer-nos nela. A arte como experiência, como ação política. Um encontro entre arte e feminismo que amplia as possibilidades, que estimula a criação de procedimentos e estratégias para construção de imagens e a ocupação de espaços. Trata-se de uma exposição/intervenção/ação, uma proposta de site-specific que a princípio intenciona dialogar com mulheres e que rapidamente se descobre tensionando o tecido institucional.

 

 

 

Ação e feminismos

Preparando a exposição, com as séries de fotografias fixadas na parede oposta ao espelho, surge a necessidade de criar textos críticos, de apresentação da exposição e da intervenção/ ação com desenho. Para a realização do texto convido uma historiadora da arte, Claudia Capa, pesquisadora do feminismo decolonial, crítica de arte feminista, performance e criação artística. Uma questão importante que se faz mais evidente nesta colaboração  é a aproximação, ou distância, entre a práxis artística e a crítica, entre a experiência e o discurso. Como preparar-nos para o encontro? Como o discurso forma parte da ação? que preparar-se?

 

Para o encontro propriamente dito, para a conversa com o grupo não existe para mim, como artista, muito preparo prévio. Não existem perguntas porque não um objetivo específico; existe abertura, desejo de encontro, desejo de escuta. Meu objetivo e preparo se referem à realização da imagem: materiais, procedimentos, etc.

 

Ainda assim percebo que sim, existe algo que gostaria de compartilhar: meu encontro com as discussões sobre autorretrato na História da Arte Feminista, outras perspectivas e modos de olhar a produção artística. Existe ainda algo que gostaria de investigar, descobrir com essa ação: que formas nós, mulheres, encontramos dentro de toda a nossa diversidade, de dialogar? De estar juntas? Como os grupos e rodas de mulheres se tornam espaços de resistência e criação de novas subjetividades?

 

A ideia era conhecer as mulheres, saber um pouco da formação do grupo e convidálas para serem ‘modelos’, dentro de uma perspectiva em que mulheres desenham mulheres e criam outros imaginários de feminino, pensando a arte como um espaço de criação e imaginação de outras subjetividades.

 

Como pode a arte, em um encontro de mulheres, facilitar outros olhares, criar outros espaços -fissuras- por meio das linguagens? Como equilibrar a construção de uma imagem poética, artística e aberta com os discursos teóricos e políticos feministas?

 

Em El desnudo feminino,6 Nead trata das representações visuais do corpo feminino nu ao longo da história da arte, tratando de seu valor cultural, dos sentidos e significados construídos através delas dentro de uma cultura patriarcal. Discute como as mulheres, em sua percepção dos feminismos e das limitações sociais impostas aos seus corpos buscam compreender, e reconstruir, essas representações por meio da arte. Ao tratar da produção artística de mulheres dos anos 70, a autora destaca como as artistas e pesquisadoras feministas passam a questionar os essencialismos que envolvem um primeiro movimento de afirmação da sexualidade feminina através do corpo nu e movem-se no sentido de reconhecer a diversidade de nossas identidades, o encontro com outras estruturas e opressões sociais.

 

A proposta de ação em mirar(nos)otras se apresenta em um contexto de produção artística onde mulheres são conscientes da diversidade de nossas identidades e buscamos umaconciencia más crítica del ejercicio del poder en la sociedad y las múltiples posiciones como sujeto que ocupan las mujeres.”7 Surge, ainda, da observação e desejo de investigação dos encontros em um espaço destinado às mulheres imigrantes, ‘vecinas’ com experiências, idiomas e culturas muito distintos.

 

A ação ocorre com mulheres em grupos diversos, dentro de um centro social e cultural do município e, assim, gera também reflexões sobre a arte de ação dentro de instituições públicas. Ainda assim, seriam necessárias outras experiências e ações, em espaços distintos, para criar bases para um debate mais amplo. É preciso compreender que a ação proporciona também um (des)encontro entre diferentes áreas do conhecimento e posicionamentos políticos, entrelaçando os campos da arte, crítica de arte, serviço social, feminismos, políticas de igualdade e imigração, entre outros.

 

Ainda assim, é possível afirmar, a partir de nossa experiência, que a ação artística gerou uma fratura no cotidiano da instituição e que, como uma lente de aumento, amplificou as contradições existentes nas relações interpessoais e institucionais, em uma contraposição de perspectivas que gera, mais que desconfortos, debate.

 

La performance no es lógica. Deshace lo normativo. Desarticula el discurso. Descontextualiza en ocasiones sus componentes. Subvierte la sintaxis habitual de los acontecimientos, y a veces es molesta, pues no tiene fácil encaje en la lógica de la convención ni del discurso artístico, ni pretende ser grata al público que la contempla.8

 

Ao final, a instituição, que acreditava estar apenas oferecendo uma experiência poética para suas frequentadoras, seu discurso de integração e igualdade questionado e busca, em vão, controlar a experiência e alterá-la, em uma presença constante da coordenação, centralizadora do debate, em parte dos encontros. Ainda assim olhares, reconhecimentos e cumplicidades se tornam possíveis: a fissura foi gerada, o (des)encontro foi possível entre mulheres.

 

Surgem pequenas conversas durante o tempo do desenho: sobre a filha adolescente, para quem ela escolheu nome igual ao meu; sobre a dificuldade em olhar-se no espelho; o prazer em ser ‘modelo’; o encantamento no reconhecimento de si pelo olhar da outra; o movimento do corpo seguindo a linha; o desejo de controle da imagem em construção; as dificuldades de manter a proporção do corpo no desenho sobre o espelho; o sentidos de retratar-nos e olhar-nos; a singularidade da experiência; o prazer com a arte; memórias de espaços de criação; a importância dos grupos de mulheres; a alegria de ver-se representada naquele espaço; etc. Trata-se de criar, na sutileza, e por meio da construção de imagens/ retratos, espaços que nos aproximam sem negar as diferenças nem mesmo as desigualdades que nos levam a buscar-nos.

 

Servirse de estrategias corporales para proponer nuevas imágenes, nuevas presencias, nuevas re-presentaciones. Estrategias que hacen posible fundar nuevos lugares desde los que se pueda proponer lo impensable en otros. Estrategias de construcción del cuerpo y de la subjetividad en espacios marcados por la censura y la obligatoriedad del silencio.9

 

Ainda que a ação proposta em mirar(nos)otras não tenha nenhuma relação com as performances analisadas por Maite Garbayo Maeztuestas situadas sob o tardofranquismo—, sua abordagem desde a perspectiva de gênero e discussão da performance como lugar dos corpos que ‘apareceminteressa para pensar uma proposta de ação que busca construir imagens a partir dos (des)encontros mas, principalmente, compreensões dos possíveis lugares de resistência inventados por mulheresartistas ou não— que parecem lançar mão do “decir sin decir,”10 estratégia, segundo a autora, presente nas performances e artistas que enfrentam o regime.

 

A presença do corpo, a abertura do processo, a troca de experiências, as cumplicidades e afetos por meio da criação compartilhada de imagens e representações de mulheres e femininos, em estratégias de encontro silenciosas; pelo olhar, através do espelho. Encontrarnos, ocupar e plasmar nossas presenças nos espaços, visibilizar —por meio das imagens— nossos corpos e os processos de silenciamento a que são submetidos.

 

Assim, o que nasce como uma proposta de ação artística que visa o estabelecimento de relações interpessoais, de encontros e desencontros pela ação/olhar do desenho, revela um potencial de visibilidade (e resistência) aos silenciamentos e relações hierarquizadas que se reproduzem, de maneira mais ou menos consciente, em espaços institucionais, inclusive aqueles dedicados às mulheres. Trata-se de explicitar a dimensão política da estética relacional.

 

 

 

Considerações finais

A ação proposta engendra reflexões e temas de investigação diversos, principalmente no que diz respeito aos encontros entre arte e feminismo, arte e política, teoria e práxis artística, produção e crítica na arte contemporânea, entre outros. O presente estudo organiza uma reflexão em torno da proposição do desenho como ação, como dispositivo relacional avaliando, em parte, as motivações e desdobramentos de uma experiência artística, da proposta de ação em mirar(nos)otras.

 

Essa reflexão cria bases para um projeto que pretende seguir criando e recriando formas de interação com outras mulheres, privilegiando o desenho e nossos (des)encontros. Afirmando o desenho e o (auto)retrato como dispositivos relacionais, pretende-se a criação de outras ações e, a partir delas, ampliar as reflexões nos mais diversos campos. Não se trata de repetir a açãobuscar lugares de encontro entre mulheres em salas espelhadas—, mas de definir um campo de atuação, entre o desenho e a ação, entre o autorretrato e o retrato, entre indivíduos e coletivos, entre mulheres, que possibilite a fissura, o (des)encontro, os estados distintos de comunicação e afetos que se dão através da experiência estética, através da linguagem visual e dos processos de construção de imagens.

 

 


1.                A tese trabalha com conceitos de semiótica, filosofia de linguagem de Mikhail Bakhtin e ambiguidade de Simone de Beauvoir para desenvolver a ideia deste afastamento e consequente presença do outro nas imagens. Pode ser acessada em: http://repositorio.unicamp.br/jspui/handle/REPOSIP/321093

2.                A palavra modelo não parece a mais adequada para essa situ-ação que a relação artista-modelo pode envolver relações de poder e dicotomias atitude-passividade. Será utilizada para facilitar o relato e a descrição das ações sem mencionar nomes das participantes.

3.                José María Bullón de Diego, Dibujo Interno. Un ensayo sobre el dibujo y sus procesos creativos (Madrid, Cultiva Libros SL, 2010), 199.

4.                Nicholas Bourriaud, Estética Relacional (Buenos Aires, Adriana Hidalgo Editora, 2008), 51.

5.                Bourriaud, 51.

6.                Linda Nead, El desnudo femenino. Arte, obscenidad y sexualidad (Barcelona: Tecnos, 2013).

7.                Nead, 105.

8.                Bartolomé Ferrando, El arte de la performance. Elementos de creación (Valencia: Ediciones Mahali, SL, 2009), 9.

9.                Maite Garbayo Maeztu, Cuerpos que aparecen. Performance y feminismos en el tardofranquismo (Bilbo: Consonni, 2016), 21.

10.             Garbayo Maeztu, 24.

 

Bibliografía

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Fecha de recepción: 29/06/2019

Fecha de aceptación: 04/09/2019