Figura 1. Mari Gemma de la Cruz, imagens de 1 a 3 do ensaio Peito de Pedra, 2018.

 

 

Reflexões sobre o meu processo criativo no ensaio Peito de Pedra

Reflections on my creative process in the essay Chest Stone

 

 

Mari Gemma De La Cruz

Artista visual-etc autônoma, Cuiabá (Brasil)

marigemma@gmail.com

https://orcid.org/0000-0001-5252-308X

 

 


 


Resumen

No ensaio Peito de Pedra*, trabalho em desenvolvimento, proponho a reflexão sobre o corpo feminino e os estigmas sexistas e machistas que se impõe a ele; do modelo renascentista do corpo clássico e perfeito; da obscenidade imposta à nudez, confinada a espaços delimitados pela moral judaico-cristã; da alienação da produção dos sentidos do corpo e sua objetificação. Uso a estética deste ensaio para me auto representar ea outras mulheres produzindo uma fricção surgida do contato entre performance, imagem e poesia, a partir de meus conflitos pessoais possibilitando a existência de um território próprio. As imagens são: autorretratos e retratos de mulheres, produzidos em longa exposição; reflexos em fragmentos de espelhos de esculturas, encontradas em museus e ruas de vários países; paisagens e objetos encontrados na natureza; e poesia autoral.

* https://www.marigemma.com/peito-de-pedra

Palabras clave: processo criativo; fotografia conceitual; arte contemporânea; corpo feminino; obscenidade da nudez feminina; objetificação feminina.


Abstract

This paper Peito de Pedra* (Stone Chest), is a work in progress in which I propose a reflection on the female body, the sexist stigmas, and chauvinism that are imposed to it. From the Renaissance model with their classic and perfect body, the obscenity imposed to nudity restricted to spaces limited by the Judeo-Christian morality, the alienation of the senses the body produces and its objectification. The aesthetics of this paper are used to represent me and other women producing a conflict that arises from the contact between performance, image and poetry, based on my personal conflicts making possible the existence of my own territory. The images are self-portraits, and portraits ofwomen produced in long exposure; reflections in fragments of mirror sculptures found in museums and streets of various countries; landscapes and objects found in nature; and copyrighted poetry.

*                https://www.marigemma.com/peito-de-pedra

Keywords: creative process; conceptual photography; contemporary art; the female body;obscenity of female nudity; female body objectification.

 

 

Cómo citar este trabajo / How to cite this paper:

De La Cruz, Mari Gemma. “Reflexões sobre o meu processo criativo no ensaioPeito de Pedra’.” En No solo musas. Mujeres creadoras en el arte iberoamericano. Monográfico Atrio 1, editado por Eunice Miranda Tapia, 168-81. Sevilla: Universidad Pablo de Olavide, Atrio, 2019.

© 2019 Mari Gemma De La Cruz. Este es un artículo de acceso abierto distribuido bajo los términos de la licencia Creative Commons Attribution- NonCommercial-ShareAlike 4.0. International License (CC BY-NC-SA 4.0).



 

 

Figura 2. Mari Gemma de la Cruz, imagens de 4 a 6 do ensaio Peito de Pedra, 2018.

 

 

Apresentação

Os meios produtores de visualidade na arte contemporânea são autônomos e trabalham diversamente a relação entre imagem/linguagem/texto, combinando e diluindo os limites entre o visível e enunciável, constituindo um campo expandido, onde a prática artística não está mais localizada somente nos diversos gêneros/suportes empregados e suas hibridizações para a realização do projeto plástico. No ensaio Peito de Pedra (figuras de 1 a 4), que se encontra em processo de construção, eu uso a fotografia híbrida como objeto de auto representação e de representação de outras mulheres e quando associada à palavra, produz uma fricção surgida do contato entre os três campos (performance, fotografia e poesia), possibilitando a existência de um território próprio.

 

Nesse diálogo/atrito das práticas sou responsável pela autoria, pesquisa, texto, direção, coreografia, cenografia, figurino, iluminação, produção da cena e agitação sociocultural, o que me posiciona como uma mulher que se constrói em múltiplas camadas e em aprofundamento constante nas técnicas. Por isso a autodenominaçãoartista visual-etc’ me situa profissional e socialmente, conforme Basbaum1.

 

Em uma destas camadas eu me encontro como feminista, na busca pela igualdade em direitos, equidade aos serviços e ao mercado de trabalho e diminuição da violência contra a mulher, que nesta sociedade onde vivo a ausência de violência contra pessoas é praticamente impossível. Nessa perspectiva, a exibição dos seios femininos publicamente em Cuiabá (cidade onde resido) e no restante do país é tratada como atentado ao pudor, exceção feita quando no contexto da amamentação. O Código Penal Brasileiro no Artigo 233 indica que praticar ato obsceno em lugar público, ou aberto ou exposto ao público, resulta numa pena de detenção, de três meses a um ano, ou multa.

 

Figura 3. Mari Gemma de la Cruz, imagens de 7 a 10 do ensaio Peito de Pedra, 2018.

 

 

 

Os seios são vistos como uma parte erótica do corpo feminino, entretanto não preocupação com a exibição masculina. Em outras palavras, o mamilo feminino significa sexo e o masculino não apresenta esta conotação. Por isso, as redes sociais como Facebook e Instagram boicotam imagens onde aparece o seio feminino com o mamilo nítido, inclusive em obras de arte e em campanhas para a prevenção do câncer de mama em mulheres.

 

Em 2016, uma ONG argentina criticou a censura de mamilos femininos no Instagram e no Facebook através da campanhaTetas x tetas’, usando o corpo de um homem num vídeo para ensinar às mulheres como fazer o autoexame preventivo do câncer de mama.2 Em Cuiabá, capital do Estado de Mato Grosso, uma exposição fotográfica que mostrava o seio de mulheres foi censurada e retirada do espaço expositivo de um shopping. As denúncias alegavam que era pornografia e ofensivo à população, segundo o fotógrafo as imagens eram sutis e conceituais.3 Em 2018, o Facebook censurou a foto da estátua pré-históricaVênus de Willendorf’ justificando que a imagem continha nudez e depois de vários pronunciamentos populares a rede social permitiu a publicação.

 

Historicamente, na Grécia, o modelo de mulher estava idealizado na divindade, especialmente em Afrodite, deusa do amor, beleza e sexualidade. Com o cristianismo, ocorreu a divisão entre corpo/alma e a nudez corporal passou a significar vergonha e humilhação, deixando de aparecer na arte, a não ser para simbolizar o pecado. A percepção da nudez como algo obsceno é decorrente da noção do ‘pecado original’ que evidenciou a corrupção do homem à tentação e a consequente perda da ‘Graça Divina’ da eternidade, segundo a moral judaico-cristã ocidental. Mulheres foram mutiladas e seus seios extirpados em martírio, como Águeda de Catânia (séc. III d.C.), mártir das tradições cristãs que posteriormente foi santificada como Santa Ágata, padroeira das doenças mamárias.

 

Durante o Renascimento, o ideal de corpo feminino grego foi revisitado devido aos estudos da anatomia humana nas escolas de artes e passou a ter várias representações como sensualidade, delicadeza, paz, liberdade e justiça, até o final do século XIX, quando passou a apresentar-se sem qualquer pretexto.

 

No século XX até os dias atuais a sacralização e ‘cosmetização’ da imagem do corpo tem se intensificado levando a consequências nefastas na tentativa de manter a juventude e beleza eternas, a qualquer preço, de acordo com um padrão idealizado: corpos com equilíbrio, simetria, proporção, solidez e, sobretudo rígidos e fortes, estimulados pela indústria da beleza, incorporando discursos da medicalização. A Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica divulgou um relatório onde o número de cirurgias estéticas apresentou um crescimento de quase 50% (entre 2009 e 2016) e a faixa etária que lidera o ranking é de 19 a 35 anos, seguido de 36 a 50 e 51 a 64 anos, sendo o Brasil o segundo país no mundo na realização destes procedimentos4 e sendo que o aumento e redução de mama correspondem a 20,1%.5 Entretanto, ainda prevalece a noção de obscenidade do corpo quando exposto no espaço público.

 

O corpo na arte é sempre um corpo-representação, um corpo imaginário que revela narrativas e cria/reforça sentidos. Ao apresentar o corpo nu ao outro, estamos desapropriando este corpo, levando ao desvelamento da sua intimidade, quebrando tabus morais e ao mesmo tempo imobilizando o corpo-objeto, dando origem ao corpo-arte.

 

Existe em toda sociedade a manipulação do poder que impõe condutas corporais coercivas, que desestruturam e alienam a produção dos sentidos e que produz uma inversão de valores do que é ‘ser humano’ e suas relações. A violência de gênero e a criminalização do direito de se expor reflete o avanço do fundamentalismo religioso em nosso sistema político e jurídico, que carrega em si a ideia de que a exposição do corpo nu, quando não em funções socialmente aceitas e impostas, é pecado e deve ser punido, especialmente após a eleição de Jair Bolsonaro, em 2018, para a presidência do Brasil.

 

Um espelho desta realidade é o fenômeno da violência crescente contra as mulheres no Brasil e na América Latina. Em 2018, a pesquisa encomendada pela ONG Fórum Brasileiro de Segurança Pública, mostrou que cerca de 1,6 milhão de mulheres foram espancadas ou sofreram tentativa de estrangulamento no Brasil. Ao mesmo tempo, 22 milhões de brasileiras, equivalente a 37,1% da nossa população, passaram por algum tipo de assédio.6 O Estado de Mato Grosso, onde resido, em 2018, teve a maior taxa de feminicídio do Brasil, considerando que existe ainda subnotificação nos casos.7 Em 2019, embora o número de homicídios tenha diminuído em relação ao mesmo período de 2018, o número de feminicídios aumentou.

 

Quando pratico a nudez na fotografia no gênero autorretrato, me coloco na frente do espelho real ou ficcional, que também pode ser social e político, portanto, um quadro pessoal se transforma em imagem a ser entregue ao mundo. A concretude dessa imagem especular unida às nossas representações corporais pode me colocar no limiar entre o patético, a obscenidade e a transcendência do eu na subjetividade. De qualquer forma, ocorre a fixação de um momento e de um sentimento através da imagem, deslocando o corpo em movimento performático para o imóvel corpo-arte.

 

A arte no século XXI vem tentando romper com a perspectiva do ‘quadro de espelhocomo ‘selfie instantânea’, onde o corpo-objeto se destrói, se constrói, se mostra e se esconde num jogo de esteticismo constante, imposto pela vida cotidiana, que nos inunda de sinais de uma estética estereotipada e induz a alcançar o ideal de perfeição e felicidade, sem marcas da doença ou de velhice.

 

Neste paradigma pós-moderno, as narrativas na arte admitem a ideia de acaso, de paradoxo, de ambiguidade e de interconexão das diversas verdades. As imagens produzidas celebram para além dos corpos clássicos, outros corpos que podem ser decadentes, irreais ou imperfeitos. As imagens apresentadas no ensaio Peito de Pedra constituem: - autorre- tratos e retratos de mulheres, em longa exposição e movimento para causar imperfeição e indefinição; - imagens de esculturas em exposição em museus ou nas ruas de diversos países, obtidas a partir do reflexo em fragmentos de espelhos o que sugere uma desconstrução da estética hegemônica perfeita; - poesia da própria autora; - imagens de objetos ou paisagens semelhantes à forma do seio feminino e aparecem cotidianamente.

 

Penso que o ensaio Peito de Pedra possa levar à reflexão do modelo renascentista ainda vigente como única verdade, superando a ilusão de que todos devem ter um corpo onde a nudez é universal, clássica, perfeita, pura e eterna, sendo obscena quando não apresentada em espaços delimitados. Esquecemos que não somos parte da natureza, somos natureza também, que a paisagem é uma metáfora da vida que passa por diferentes geografias, com direito de vivermos por inteiras, sem medo e sem vergonha de nos mostrar, daí a apresentação de algumas imagens em dípticos, tendo como contraponto paisagens e objetos naturais.

 

 

 

O Processo de Criação Artística

Meu processo, mesmo sendo racional e planejado, possui elementos subjetivos que não surgem imediatamente à minha consciência e que estão ligados a fatores emocionais, familiares, culturais e históricos juntamente com habilidades e competências provenientes do conhecimento das técnicas e dos materiais utilizados.

 

Portugal8 afirma que o ato de criar ao mundo algo que ele necessita, podendo representar um objeto, um sentimento ou algo construído mentalmente. Entretanto, sentimentos e emoções, por si , não dão origem a nada novo, sendo necessário ultrapassa-los, resolver e transformar em estímulos. Após sua reelaboração vai haver uma reconstrução dos mesmos, modificando-os por meio da articulação entre uma reflexão natural, imaginação e conhecimentos técnicos.

 

Para mim, o estado emocional diante de uma situação incômoda pode servir de estímulo para a produção de imagens, onde procuro aliar meu corpo ou de outra pessoa com palavras, cores, objetos e paisagens, em várias camadas. Foi assim que ocorreu inicialmente ao pensar sobre a produção do ensaio Peito de Pedra. Houve um sentimento de incômodo e opressão ao ter a comparação dos meus seios com frutas (objetificação) e por não poder exibi-los livremente em meus trabalhos performáticos de autorretratos, devido à censura, até mesmo familiar, que nesse âmbito sou considerada uma pessoa que fazarte apelativa e bizarra’, e consideram que aos meus 56 anosessa postura não condiz com a minha idade.’

 

A estética relacional, que também se faz presente no meu processo criativo, é definida por Bourriaud9 como um “conjunto de práticas artísticas que tomam como ponto de partida (teórico e prático) o grupo das relações humanas e seu contexto social, ao invés de um espaço autônomo e privativo”, ou seja, é um segmento da arte contemporânea que se concentra nas relações diretas entre espectador e obra.

 

Essas relações se apresentam também durante meu processo criativo, ocorrendo uma alquimia entre informações, ideias e performance, numa combinação de ingredientes meus e de outros, de forma que algo que não existia antes passe a existir, a partir de determinadas características que alguém forneceu e eu senti. Segundo Salles,10 “um artefato artístico surge ao longo de um processo complexo de apropriações, transformações e ajustes” que pode advir do espectador que acompanha o artista.

 

Durante o processo criativo do ensaio Peito de Pedra houve troca de informações, ideias e empréstimo de objetos com o público espectador, onde a colaboração era feita através das redes sociais, mas especialmente com as mulheres que eu fotografei e que expressaram ideias, percepções e sentimentos que puderam ser incorporadas ao trabalho. Nessa perspectiva, realizei uma pequena entrevista com elas e abaixo seguem as questões e a subsequente resposta de uma delas. Houve a garantia de que toda a informação fornecida seria anônima, e suas identidades não poderiam ser reveladas nas imagens.

 

- (A) Como foi sua experiência ao ser fotografada por mim, o que significou pra você, incluindo os momentos antes de começar a ser fotografada, e os momentos após terminar? (B) O que você sentiu e pensou quando viu sua imagem pronta? (C) O que você sentiu e pensou quando viu o conjunto das fotografias onde sua imagem está inserida?

 

(A) Bom, ser fotografada por você Mari é um momento único. Você nos deixa envolta ao seu trabalho, faz realmente nos sentir parte. Nos interage do seu pensar e do seu sentir, mas também nos deixa a vontade. Me deixa nua sem nenhum pudor ou receio. Pois faz da sua fotografia uma bela arte. Fazer parte dessa sua arte é sempre emocionante. Sinto liberdade ao ser fotografada. (B) É como se algo de mim ficasse impresso na fotografia. Não consigo lembrar o que exatamente. Uma inquietude. No que causaria. Fico imaginando numa exposição e estar entre as pessoas sem que elas saibam que sou eu. (C) É gostoso fazer parte de algo maior. Saber que outras pessoas com teor em arte apreciaram algo com que contribuí. Eu estar onde era algo que eu antes apreciava é algo indescritível.

 

Portugal11 afirma que quando o sujeito se expressa, pode ser de forma consciente ou inconsciente, autêntica ou não, no entanto, uma vez que a criação consiste na invenção de algo que representa a intenção do artista, ela pode expressar: - sentimentos e emoções que o artista tem ou conhece a partir de outros; - sua perspectiva em relação à natureza; - sua experiência existencial, tanto física e emotiva, como fantástica.

 

O mesmo autor ainda acrescenta que, apesar da vida do artista não ser capaz de explicar por inteiro a sua arte, é certo que está interligada a outras pessoas ou circunstâncias. Na arte existe um estado emocional que é exteriorizado, trazido à superfície e transmitido aos espectadores. No entanto, a atividade criativa não deve ser considerada somente como meio de expressão das emoções, que as obras de arte objetivam a experiência humana, ou seja, mostram novas maneiras de interpretar e compreender o mundo, que permitem experienciar realidades que de outra maneira seriam desconhecidas, por isso ela é representacional e simbólica.

 

O mundo que conhecemos, quando observamos uma obra de arte, é único e entrar nele significa receber uma parte do artista, através dos significados e sentimentos. Meu trabalho artístico é resultado de minhas experiências, memórias, criatividade, imaginação e estudo, bem como das mulheres que eu fotografei e a observadora ou observador da obra podem entrar neste mundo.

 

Os vestígios do processo de planejamento e execução do trabalho variam na materialidade (cadernos, blocos de notas, croquis, rabiscos, rasuras, roteiros, projetos, arquivos digitais de áudio ou de imagens paradas ou em movimento, cópias de postagens em redes sociais, pen drives, HD externos, e-mails, etc.) e representam minhas pegadas no percurso de criação, mostrando as relações estabelecidas entre as pessoas, o ambiente e meu exercício mental, que evidenciam a natureza indutiva da criação, onde diversas hipóteses são levantadas e testadas.12

 

Vou levantando hipóteses e testando-as permanentemente, portanto muitas possibilidades habitam o mesmo lócus, sem a pretensão de alcançar a perfeição, pois está em constante revisão ou transmutação. Mesmo quando me dou por satisfeita, num determinado momento, logo após, pode surgir a necessidade de novas camadas sensoriais, pois o estado emocional se torna diferente do que era antes e refaço o trabalho a partir do que está construído ou não. Acredito que essa é uma das características da obra contemporânea: ser marcada pela subjetividade e pela interação de comportamentos diversos, incluindo de outras pessoas.

 

Para Salles a obra é contemporânea enquanto ocorre

 

a impossibilidade de se determinar com nitidez o instante primeiro que desencadeou o processo e o momento do seu ponto final [...] é um momento de regressão e progressão infinitas [...] cai por terra a ideia da obra entregue ao público como a sacralização e perfeição... A obra está sendo abordada sob o ponto de vista do fazer, dentro de um contexto histórico, social e artístico [...] um movimento feito de sensações e pensamentos, sofrendo intervenções do consciente e do inconsciente.13

 

 

 

Estímulos precedentes à criação ou algo que me incomoda

Minha experiência na criação artística está associada, num primeiro momento, à existência de um conflito decorrente de estímulos que precedem o ato criativo em si, que me leva a perceber o mundo (interno e externo). Estes estímulos influenciam o processo, através das sensações que me causam. Foi assim que ocorreu ao começar o ensaio Peito de Pedra quando ao viajar à Europa (2016) e visitar diversos museus, encontrei obras de arte com nus de mulheres e de homens sem classificação etária de censura para visitação, ao contrário, observei grupos escolares apreciando/analisando as esculturas. No mesmo ano, fotografias foram censuradas em Cuiabá, por apresentarem seios nus e eu fui recriminada por familiares por postar em rede social autorretratos onde me expunha. Essas situações me estimularam a fotografar esculturas nuas, presentes em museus e ruas em diversos países incluindo o Brasil, através do reflexo em fragmentos de espelhos, que geravam uma imagem fragmentada e invertida, depois busquei estabelecer correspondências com elementos naturais, na busca de mostrar que somos natureza e portanto o preconceito é uma inversão de valores, os quais o Brasil tem vivenciado.

 

Portugal14 coloca que a percepção resulta da relação entre aquilo que o objeto é e aquilo que nos é transmitido através das sensações, estando inerentemente relacionada à atitude corpórea. A percepção é afetada pela história da vida do sujeito, suas experiências e sua subjetividade e não pode ser assumida como um fato, uma vez que existe uma distância entre aquilo que eu e outra pessoa percebemos sobre uma mesma coisa.

 

Desta forma, ao produzir uma imagem, a partir das percepções, a partir dos estímulos que recebi, não garantia de que a observadora ou observador vai sentir, analisar e compreender a imagem da mesma forma que eu, embora usemos partes do corpo de forma semelhante (por exemplo olhos e cérebro) e as imagens comuniquem objetivamente. Esta condição diferenciada ocorre devido as diferentes experiências e significados de cada um.

 

 

 

Busca de conhecimentos complementares ou como resolver uma situação

Durante o processo de criação, se manifestam habilidades e competências adquiridas de forma empírica ou pelo estudo, muitas vezes auto didático, que minha formação acadêmica é em Farmácia Industrial, com Mestrado em Saúde e Meio Ambiente na área de Etnobotânica com plantas medicinais. Nessa perspectiva, por ter exercido por mais de trinta anos funções como gestora, professora e pesquisadora universitária (agora aposentada), formei o hábito do planejamento e da pesquisa, que neste ensaio foi realizada sob os aspectos históricos, sociopolíticos e técnicos para a produção da imagem, de forma a afirmar, valorizar e melhorar a proposta. Nisso reside um grande prazer, decorrente do aprendizado e aprofundamento, pois transmite a mim um valor de sentido existencial ao que produzo, baseado na esperança de que meu trabalho gere inquietações e perguntas reflexivas às observadoras e observadores.

 

Esta coragem criativa passa pela descoberta de novas formas, novos símbolos, novos padrões através dos quais me construo e ao apreciar o trabalho criativo de outros também crio e experimento novas sensibilidades.

 

O princípio criativo se manifesta, não como uma posse sem interrupção, mas como um poder relacionado com o self, o centro de toda a personalidade.15 Nesta fase, existe um filtro mental que seleciona textos e trabalhos de outros pesquisadores e artistas, acadêmicos ou não. Vou colecionando as informações no bloco de notas do celular e, posteriormente, transfiro-as para arquivos específicos no computador. A partir daí, faço esboços e descrições técnicas das imagens que pretendo produzir. Cada trabalho é acompanhado de referências bibliográficas que o balizam.

 

 

 

Deslocamento para outra realidade ou quando me desligo do mundo

Quando começo a esboçar e planejar a execução das imagens é como se me transportasse para outra realidade. Ocorre ativação da memória e lembro de situações vividas no passado por mim ou por pessoas próximas. O fato das lembranças virem à tona é muito importante, pois não tenho muitas recordações do passado, pois na minha infância e adolescência, repetidamente, me disseram para esquecer situações traumáticas, evitando a dor da recordação, mas o esquecimento não foi seletivo. Ao planejar as imagens se inicia um processo que traz à consciência minha própria história e eu me apodero disso, possibilitando também um trabalho terapêutico e de autocura. A fotografia me ajuda nesse sentido.

 

Nas etapas que se seguem, alguns elementos se perdem, outros se mantêm e outros se transformam. Em cada imagem solo ou agrupada em dípticos ou polípticos um nível de conceitualização e um nível imaginário que oferece um leque de possibilidades diferentes do que a memória me mostrou, onde os limites entre o real e o fantástico se diluem.

 

Fischer (apud Haun16) afirma que para conseguir ser um artista, é necessário dominar, controlar e transformar aexperiência em memória, a memória em expressão, a matéria em forma.

 

A memória é importante, pois possibilita perpetuar informações, conhecimentos e experiências às futuras gerações e permite a humanidade se colocar em constante processo de evolução e de tomada de consciência acerca de suas produções. Pode-se dizer que sem a memória seria impossível à apropriação dos resultados da prática social anteriormente concretizada.16

 

 

Tentativa, acerto, erro, frustração ou quando estarei satisfeita

Após os esboços e o planejamento de execução das imagens eu inicio o fazer fotográfico propriamente dito, ou seja, o ‘momento do click’. Poucas vezes consigo fazer a imagem de uma única vez, seja por causa da frustração devido a não correspondência da imagem produzida àquela imaginada pois o resultado não mostra as diversas camadas sensoriais: seja por questões de competência técnica; seja por minha insegurança; seja por questões fisiológicas limitantes decorrentes de uma enfermidade que sou portadora.

 

Quando isso ocorre, por um ou mais motivos conhecidos ou não, pode haver um bloqueio criativo, então faço uma pausa, me distancio, relaxo, faço outros trabalhos (tenho vários trabalhos em andamento que também geram insights resolutivos), vou a procura de soluções através de aprendizados, desde leituras, cursos, mentorias, troca de ideias com outros artistas e/ou amigos, até processos terapêuticos para autoacolhimento, diluindo o perfeccionismo. Isso ocorreu várias vezes durante o processo de criação do ensaioPeito de Pedraaté encontrar (ao acaso?) uma forma de tratar em camadas as imagens iniciais.

 

Cole17 afirma que a ação criadora é suscetível ao acaso que se encontra em constante movimento, tornando-se assim uma atividade que explora o terreno do desconhecido. O acaso é um elemento importante de ser investigado nos processos de criação artística. Vivemos imersos em um mundo pleno de estímulos visuais, sonoros, olfativos e intelectuais. Muitos desses estímulos nos passam despercebidos, mas alguns deles brilham em nossa mente, incendiando nossa imaginação. Entretanto, um acaso é percebido e apropriado quando estamos em um estado de predisposição, então ele deixa de ser um mero acaso e passa a ser um acaso significativo.

 

Cabe salientar que o ensaio Peito de Pedra ainda não está concluído, pois vou em busca de outra materialidade tridimensional: a pedra. Esta escolha se pela ampliação dos sentidos, utilizando o tato.

 

Mesmo com erros e frustrações, após encontrar soluções sinto satisfação, portanto não tenho o sentimento de fracasso, pois transformo tudo em aprendizado, que me impulsiona a continuar. Sinto mais satisfação e contentamento durante o processo de criação do que quando o trabalho é exposto ao mundo, através de plataformas físicas ou digitais.

 

Portugal18 afirma que o artista não sente ansiedade ou medo, o que ele sente é regozijo, diferente de felicidade ou prazer, no momento de criar, não sente gratificação ou satisfação (embora possa experimentá-las mais tarde, ao sentar-se para descansar, com um cachimbo ou uma bebida). Ele sente regozijo, definido como a emoção que acompanha o mais alto grau de consciência, o estado de espírito que nasce da experiência de realizar as suas potencialidades. É ele que investe toda a sua responsabilidade na obra, sendo apenas dele.

 

 

 

Considerações finais

Este estudo descritivo do meu processo criativo para o ensaio Peito de Pedra apresenta limitações, primeiro porque a descrição e análise qualitativa é feita por mim, não havendo o distanciamento e isenção necessários a fim de evitar vieses de interpretação.

 

Reconheço que existe um elemento subjetivo no processo da autoinvestigação que não fornece certezas, que os processos psicológicos da memória estão muito presentes, não contribuindo para identificar leis generalizáveis de causa-efeito, nem estabelecer tendências na população. Por outro lado, minhas experiências podem ser igualmente encontradas em outro artistas, de forma parcial ou integral, que busquei corroborar minha descrição através de outros autores.

 

Em segundo, meu processo criativo não é linear, ao contrário, minha mente funciona como numa máquina de Pimball,19 quando uma bola (pensamento/sentimento) é acionada por uma situação, ela vai fazendo múltiplas conexões, acendendo luzes de ideias, que apesar de possuir constituintes em comum a outros pessoas, são variáveis subjetivas erelevantes, decorrentes de fatores internos (pessoais) e externos, que comunicam e influenciam toda a criação.

 

Por último, a escrita deste artigo que agora apresento, teve o objetivo de sair de um bloqueio criativo e de um sentimento de frustração que eu estava passando e que pode ser superado, depois que eu agrupei as diversas referências bibliográficas, as reli, trouxe forma ao pensamento e escrevi.

 

Após a primeira formatação do texto, senti satisfação com o que escrevi e assim pude produzir uma performance e ficar contente com oresultado dela. O primeiro formato deste artigo foi enviado a três pessoas amigas/artistas a fim de que verificassem se o que eu escrevi tinha coerência com o meu fazer. Aresposta foi positiva, então agora após correções entrego ao mundo.

 

 


1.       Quando um artista é artista em tempo integral, nós o chamaremos de artista-artista’; quando o artista questiona a natureza e a função de seu papel como artista, escreveremos artista-etc.’ (de modo que poderemos imaginar diversas categorias: artista-curador, artista-escritor, artista-ativista, artista-produtor, artista-agenciador, artista-teórico, artista-terapeuta, artista-professor, artista-químico etc.) [...] Artista é um termo cujo sentido se sobrepõe em múltiplas camadas, isto é, ainda que seja escrito sempre da mesma maneira, possui diversos significados ao mesmo tempo. Sua multiplicidade, entretanto, é invariavelmente reduzida apenas a um sentido dominante e único. Fernanda Curi, “Ricardo Basbaum, um artista-etc,” Fundação Bienal de São Paulo, 25 julho 2012, consultada em 22 junho 2019, https://bit.ly/31Y8zR0

2.       Cultura Livre, “Ong argentina cria campanha contra o câncer à prova de censura em redes sociais,” consultada em 10 de maio de 2017, https://bit.ly/2Xv8hSz

3.       Isabela Mercury, Exposição fotográfica que une o nu feminino com elementos do cerrado é censurada e retirada do Goiabeiras Shopping,” Olhar Direto, 13 de junho de 2016, Notícias / Artes visuais, https://bit.ly/2Nmv3If

4.       Folha Vitória, “Especial Mente e Corpo: Brasil é o segundo no ranking mundial de cirurgias plástica,” consultada em 22 de junho de 2019, https://bit.ly/2X8uTE3

5.       Terra, Brasil se torna uma superpotência da cirurgia plástica,” consultada em 22 de junho de 2019, https://bit.ly/2IVMVp1

6.       Luiza Franco, Violência contra a mulher: novos dados mostram que não lugar seguro no Brasil,” BBC News, 26 de fevereiro de 2019, Brasil, https://bbc.in/2SsM2pr

7.       “Mato Grosso tem a maior taxa de feminicídio do país,” Agora Mato Grosso, 7 de março de 2018, https://bit.ly/2Yjcm9n

8.       Jéssica Teixeira Portugal, “A experiência do processo de criação artística (Tese do Mestre em Psicologia, ISPA Instituto Universitário Ciências Psicológicas, Sociais e da Vida, 2015), 105, https://bit.ly/2IUjuUh

9.       Nicolas Bourriaud, Estética relacional (São Paulo: Martins Fontes, 2009).

10.     Cecília Salles, Gesto inacabado: processo de criação artística (São Paulo: Intermeios, 2013), 106.

11.     Portugal, “A experiência do processo,” 105.

12.     Mari Gemma De La Cruz, Fotografia em campo expandido a palavra como parte da materialidade das obras,” em Anais do I Congresso Poéticas da Proximidade. Literatura, Arte, Polí (Cuiabá, 28-30 de novembro de 2018), coord. Maria Elisa Rodrigues Moreira (Cuiabá: Universidade Federal de Mato Grosso, 2019), consultada em 22 de junho de 2019, https://bit.ly/2XEkkwI

13.     Salles, Gesto inacabado, 106.

14.     Portugal, “A experiência do processo,” 105.

15.     Portugal, “A experiência do processo,” 15.

16.     Isis Conrado Haun, Arte e memória: da criação artística à formação dos sentidos estéticos,” Revista RBBA, v. 6, no. 2 (2017): 14-35, consultada em 23 de março de 2019, https://bit.ly/2NuE0j0

17.     Ariane Daniela Cole, “O processo de criação artística e a constituição da cultura,” Educação, Arte e História da Cultura, no. 5/6 (2005-2006): 92-101, consultada em 10 de junho de 2019, https://bit.ly/2IV7zFP

18.     Portugal, “A experiência do processo,” 18.

19.     Jogo de arcade, estilo fliperama, no qual os pontos são marcados por um jogador que manipula uma ou mais bolas metálicas em um campo de jogo. “Pinball,” Wikipédia, última modificação 12 de dezembro de 2019, 22:47, https://bit.ly/2tKzcYV

 

Bibliografia

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Fecha de recepción: 29/06/2019

Fecha de aceptación: 02/09/2019