Vista parcial do Cemitério da Boa Vista, Vitória/ES. © Fotografía: Paloma Barcelos Teixeira e Igor Martins Medeiros Robaina

A cidade dos vivos e a cidade dos mortos: considerações geográficas sobre cemitérios, transformações urbanas e políticas territoriais na cidade de Vitória, Espírito Santo (1912-1989)

The City of the Living and the City of the Dead: Geographical Considerations
on Cemeteries, Urban Transformations, and Territorial Policies in the City of Vitória, Espírito Santo, Brazil (1912-1989)

A cidade dos vivos e a cidade dos mortos: considerações geográficas sobre cemitérios, transformações…

Paloma Barcelos Teixeira

Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, Brasil

paloma93barcelos@hotmail.com

0000-0002-6594-0533

Igor Martins Medeiros Robaina

Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, Brasil

Universidad de Burgos, España

igorobaina@gmail.com

0000-0002-2188-5245

Recibido: 11/03/2023 | Aceptado: 27/07/2023

Paloma Barcelos Teixeira / Igor Martins Medeiros Robaina

Resumo

Palavras-chave

Os estudos sobre cemitérios representam um campo de interesse
crescente, uma vez que são relevantes para a reflexão sobre o espaço nas cidades, especialmente porque são produto e reflexo de suas dinâmicas urbanas. Dessa forma, a análise espacial da cidade de Vitória, capital do Estado do Espírito Santo, no sudeste brasileiro, uma das cidades mais antigas do continente, permite compreender como seus cemitérios participaram dos processos de transformação urbana. Metodologicamente, além de uma extensa revisão bibliográfica, foram utilizadas fontes documentais relacionadas às transformações urbanas da cidade, bem como trabalhos de campo que envolveram o registro de imagens e reconstruções territoriais. Como resultado, conclui-se que, embora a distribuição e a mudança espacial desses cemitérios tenham sido, por um lado, resultado de decisões nos planos urbanos gerais, por outro lado, suas localizações e extensões impactaram as formas de crescimento da cidade.

Cemitérios

Transformação urbana

Espaço urbano

Localização

História Urbana

Vitória

Abstract

Keywords

Cemetery studies represent a growing field since they are relevant to understanding urban space, especially as they are a product and reflection of the city dynamics. Thus, the spatial analysis of the city of Vitória –the capital of the state of Espírito Santo in southeastern Brazil, one of the oldest cities on the continent– leads to an understanding of how its cemeteries participated in urban transformation. Methodologically, in addition to an extensive literature review, a set of documentary sources regarding the city’s transformations was used, as well as fieldwork involving image records and territorial reconstructions. As a result, it is concluded that while the distribution and spatial change of these cemeteries were, on the one hand, a result of decisions in the general urban plans, on the other hand, their locations and extensions impacted the city’s growth.

Cemeteries

Urban Transformation

Urban Space

Location

Urban History

Vitória

Cómo citar este trabajo / How to cite this paper:

Barcelos Teixeira, Paloma, Igor Martins Medeiros Robaina. “La ciudad de los vivos y la ciudad de los muertos: consideraciones geográficas sobre cementerios, transformaciones urbanas y políticas territoriales en la ciudad de Vitória, Espírito Santo, Brasil (1912-1989).” En “Lugares para la muerte. Escenarios, prácticas y objetos urbanos en el siglo XX,” editado por David Dal Castello y Matías Ruiz Diaz, dossier monográfico, Atrio. Revista de Historia del Arte, no. 29 (2023): 284-306. https://doi.org/10.46661/atrio.8101.

© 2023 Paloma Barcelos Teixeira e Igor Martins Medeiros Robaina. Este es un artículo de acceso abierto distribuido bajo los términos de la licencia Creative Commons Attribution-NonCommercial-ShareAlike 4.0. International License (CC BY-NC-SA 4.0).

Introdução

Nas últimas décadas, os estudos sobre a morte se constituem como uma área de interesse crescente nas Ciências Humanas e Sociais, tendo nos cemitérios, em particular, uma convergência cada vez mais relevante para compreender a relação entre a morte, a política e a cultura. Os cemitérios são lugares onde a Geografia, a memória e a História se encontram, por meio de uma série de ritualizações e ressignificações na sociedade[1]. A presente análise se posiciona na fronteira entre a Geografia, como campo do conhecimento científico moderno, o conjunto das Ciências Humanas e Sociais e o campo dos estudos cemiteriais no Brasil.

Nesse sentido, é importante ressaltar a existência de um acúmulo representativo de estudos sobre a questão cemiterial pela comunidade científica brasileira. Desde a década de 1970 –apesar do maior crescimento a partir do século XXI–, os estudos relacionados à morte e aos cemitérios têm se intensificado e ganhado uma paulatina visibilidade em termos de análises e difusão do campo, abordando desde aspectos de localização, distribuição e organização dos cemitérios, conflitos urbanos e questões de classe, até suas relações com as artes[2].

É importante ressaltar a presença da Associação Brasileira de Estudos Cemiteriais (ABEC), uma entidade sem fins lucrativos, fundada em 2004, durante o 1º Encontro sobre Cemitérios Brasileiros. Atualmente, no site oficial da ABEC[3], há cerca de 90 pesquisadores de diversas áreas do conhecimento que integram a associação, interessados na temática cemiterial e suas relações com a morte e o morrer no Brasil. A ABEC faz parte da “Red Iberoamericana de Valoración y Gestión de Cementerios Patrimoniales”, tendo como um dos principais objetivos viabilizar as pesquisas na área cemiterial e, consequentemente, consolidar cemitérios brasileiros como patrimônio cultural material e imaterial da sociedade.

A temática dos cemitérios também tem despertado interesse no campo da Geografia desde o período da institucionalização do campo disciplinar, então conhecida como Geografia Tradicional. O geógrafo francês Pierre Deffontaines (1959)[4] e suas preocupações com os aspectos geográficos da religião, destacou a importância dos cemitérios, enfatizando a materialidade das expressões simbólicas na paisagem diante das práticas culturais relacionadas à morte. Assim, os estudos realizados posteriormente pela Geografia sobre o tema têm analisado diferentes transformações socioespaciais, levando em consideração os cemitérios como elementos importantes na compreensão do espaço urbano, desde os diferentes processos que envolvem o planejamento urbano e as questões ambientais[5].

No caso da Geografia brasileira, as análises sobre o tema ainda se estabelecem como uma lacuna. Destacam-se, contudo, os trabalhos de Antônio Pegaia (1967)[6], “Estudo geográfico dos cemitérios de São Paulo” e Eduardo Rezende (2006)[7], “O céu aberto na terra: uma leitura dos cemitérios na geografia urbana de São Paulo”. Sobre a cidade de Vitória, nosso objeto de estudo, Paloma Teixeira (2022)[8], “Sete Palmos de Terra: Historiografia e Desigualdade na Formação Territorial dos Cemitérios de Vitória/ES”.

Como recorte espacial, foi analisada a cidade de Vitória, uma das mais antigas do Brasil, fundada em 8 de setembro de 1551 pela colonização portuguesa. Na época, a região era habitada pelos indígenas da etnia tupiniquins e possuía uma localização estratégica no Atlântico Sul. A presença de uma baía protegida por estruturas rochosas e compostas por um conjunto de pequenas ilhas permitiam a edificação de fortificações, estratégia que desempenhou grande importância na defesa do território contra invasões estrangeiras durante todo o período colonial[9].

Contudo, seu crescimento urbano e populacional entre o século XVI e a primeira metade do XIX foi bastante limitado em comparação com as duas principais concentrações urbanas litorâneas vizinhas: o Rio de Janeiro (500 quilômetros ao sul) e Salvador (1000 quilômetros ao norte). No entanto, o crescimento econômico e urbano no Estado do Espírito Santo foi bastante desencadeado pela expansão da cultura cafeicultura de exportação e, sobretudo, com as mudanças ideológicas, especialmente, a partir de 1889, ano da Proclamação da República. Atualmente, a cidade de Vitória se caracteriza como o centro da Região Metropolitana da Grande Vitória, que abrange 5 municípios (Vila Velha, Cariacica, Guarapari, Viana, Fundão e Serra), possuindo um milhão e oitocentos mil habitantes e capital do Estado do Espírito Santo.

Estas mudanças geraram uma série de impactos políticos e econômicos, afetando diretamente a cidade de Vitória, capital do Estado do Espírito Santo. Além do crescimento populacional local, os fluxos migratórios e uma série de eventos ligados ao “modo de lidar com a morte” (como, por exemplo, os períodos de grandes epidemias[10]) obrigaram transformações de natureza sanitária sobre os espaços cemiteriais da cidade. No caso da presente análise, essas mudanças serão vistas sob o recorte temporal de 1912 a 1989. Atualmente, a cidade de Vitória possui um conjunto cemiterial composto pelo Cemitério Público de Santo Antônio (municipal); o Cemitério público da Boa Vista/Maruípe (municipal) e quatro pequenos cemitérios particulares: o Cemitério da Irmandade do Santíssimo Sacramento, o Cemitério da Irmandade de Santo Antônio dos Pobres, o Cemitério da Irmandade de São Benedito do Rosário e o Cemitério da Irmandade Nossa Senhora da Boa Morte e Assunção, que se constituem como o objeto de análise em conjunto com a própria evolução da cidade.

A ideia de uma certa arqueologia (ou geografia) das cidades a partir dos cemitérios, é útil para verificar as dinâmicas espaciais estabelecidas na área urbana, atravessando períodos de diferentes gestões políticas. Tomando outros caminhos com interesses distintos, a cidade de Vitória/ES já foi analisada segundo seus projetos de expansão ligados a mercados de terra e produção de área urbana, algo que move diretamente as tradições dos estudos urbanos na Geografia[11]. Em outra direção, este mesmo conjunto de interesses também se constitui como um importante objeto de análise da Arquitetura (planimetria e a volumetria histórica), sob a perspectiva da produção social do espaço urbano, focalizando aspectos do mercado imobiliário para identificar a dinâmica do processo de urbanização em diferentes períodos no Brasil, desde o período colonial até a primeira República, isto permitindo associações diretas com os espaços cemiteriais no espaço urbano[12].

Nesse contexto, o objetivo geral deste artigo é, simplesmente, compreender como as lógicas de implantação, localização e transformação dos cemitérios da cidade de Vitória tiveram um impacto significativo na organização do espaço urbano, articulado por uma série de relações socioespaciais de cooperações, tensões e conflitos. Esta questão possuiu um lugar fundamental em diferentes momentos na agenda política da cidade em termos de planejamento territorial e gestão urbana, desdobrando, assim, em uma complexa relação entre a cidade dos vivos e a cidade dos mortos. Estudar os cemitérios da cidade de Vitória pode proporcionar uma experiência capaz de revelar não apenas a realidade local, mas também de possibilitar subsídios para compreender os estudos sobre a morte no mundo Iberoamericano.

Materiais e métodos

A presente investigação está fundamentada nas bases da Geografia Histórica, que busca compreender as transformações espaço-temporais em um determinado recorte territorial de análise, levando em consideração as relações sociais, políticas, econômicas e culturais que influenciaram essas transformações geográficas[13].

Para expor a formação e a evolução territorial do tecido urbano de Vitória, analisamos as dinâmicas espaciais, considerando processos históricos e geográficos, destacando os cemitérios e seus impactos socioespaciais. As análises recorreram a diferentes fontes documentais entre 1912 e 1989, período que abarca desde a inauguração do cemitério público de Santo Antônio até a última expansão do cemitério de Boa Vista, consolidando os espaços cemiteriais vigentes.

Neste estudo, examinamos os cemitérios de Vitória tanto como marcas geográficas do passado, quanto produtos e reflexos de ações presentes e futuras. O Geógrafo brasileiro Maurício de Almeida Abreu destaca que “não é muito comum encontrar vestígios materiais [geográficos] do passado nas cidades brasileiras, mesmo nas que já existem há bastante tempo”[14]. Isso se deve, em parte, à rápida urbanização e ao processo de modernização no Brasil, que resultou na destruição de muitas formas materiais antigas para a edificação física de uma nova estrutura socioespacial. Similarmente, o geógrafo Rui Erthal[15] aponta que, apesar do Brasil possuir registros do século XVI, a preservação desses se constitui como um desafio. Por certo, os processos socioespaciais na cidade de Vitória seguem um mesmo padrão de dificuldades em termos de busca, análise e compreensão. Assim, a pesquisa recuperou memórias sobre a localização dos cemitérios desaparecidos da cidade até sua atual configuração.

Diante destes aspectos, estes foram os seguintes percursos metodológicos adotados:

  1. Levantamento bibliográfico: Hemeroteca Digital Brasileira (HDB), onde selecionamos os principais periódicos da cidade de Vitória no período de análise, com o objetivo de identificar a presença de registros, estudos e análises da questão cemiterial no Estado do Espírito Santo;
  2. Realização de trabalhos de campo em arquivos públicos e eclesiásticos em busca de fontes documentais e iconográficas: mapas, fotografias e documentação escrita;
  3. Realização de levantamentos de campo e, também documentais, em todos os cemitérios em funcionamento na cidade de Vitória. Essa etapa incluiu o acesso aos livros de registro de sepultamentos e outras fontes documentais disponíveis;
  4. Por fim, também foi realizado, por meio dos trabalhos de campo, uma ampla produção de imagens fotográficas de sepulturas e das áreas dos diferentes cemitérios existentes e do seu entorno, bem como entrevistas junto a administradores e funcionários.

O caso de Vitória, capital do Espírito Santo

Durante o período colonial brasileiro, o sepultamento dos corpos no interior das igrejas ou em terrenos contíguos a elas se caracterizava como uma prática comum. Isso era resultado de uma reprodução da matriz cultural católica, que considerava a definição do lugar de sepultamento próximo de suas referências e signos de proteção um sinal de prestígio espiritual. No entanto, a partir da primeira metade do século XIX, este modelo espacial entre os cemitérios e as igrejas foi gradualmente alterado pelos fundamentos do higienismo, que os deslocou para as periferias do espaço urbano, em muitas cidades, devido à necessidade de lidar com grandes epidemias. A medicina, como conhecimento aplicado às políticas de ordenamento territorial, começou a apropriar-se do fenômeno da morte, avançando no espaço antes dominado pela religião[16].

No Brasil, o cientificismo aplicado às cidades surgiram tardiamente em relação à Europa. Na segunda metade do século XIX, em meio ao fortalecimento dos ideais republicanos, o Estado brasileiro modernizou suas estruturas, especialmente, nos espaços urbanos. Alguns médicos pertencentes às elites locais ou regionais, com formação acadêmica na Europa, centrados na ideia de progresso, contribuíram na construção de um novo projeto civilizatório positivista e secularizado, fato que se rebateu fortemente na relação entre morte, cidade e população.

O processo de mudança dos espaços de sepultamentos para as periferias urbanas, impulsionado pelas preocupações sanitárias, verificado em Vitória, capital do Espírito Santo, consolidou-se a partir da segunda metade do século XIX. Mas os sepultamentos sistemáticos em cemitérios públicos extramuros só tiveram início, após as administrações públicas do início do século XX terem confirmado a região do bairro de Santo Antônio, distante do centro da capital, para sediar alguns dos seus principais locais de sepultamento.

Contudo, a formação histórica e territorial das necrópoles de Vitória remonta, obviamente, a eventos anteriores ao recorte temporal proposto, sendo o ano de 1912, por si, o resultado da articulação de diversos acontecimentos iniciados, principalmente, a partir da segunda metade do século XIX. Entretanto, é possível destacar esse período inicial de análise uma vez que ele dá início a um amplo conjunto de reformas urbanas cujo planejamento incluía a instalação do principal cemitério da cidade, em atividade até os dias de hoje.

Jerônimo de Sousa Monteiro, originário de uma família abastada de fazendeiros de Cachoeiro de Itapemirim, no interior do Estado, foi governador do Espírito Santo entre 1908 e 1912. Representando a oligarquia rural capixaba e com familiares que ocupavam posições de destaque na política, na religião e nos negócios do Estado. O contexto econômico foi oportuno para grandes transformações políticas devido às receitas favoráveis das contas públicas, especialmente devido ao grande volume de exportação de café e ao valor do produto no mercado internacional, da venda da Estada de Ferro Sul e de um vultuoso empréstimo obtido na França. Assim, desde a implantação do regime republicano, em 1889, as administrações públicas tentavam romper com os resquícios coloniais empenhando-se em transformações urbanas, dirigidas a um ideal de modernidade de matriz europeia. A capital do Espírito Santo, assim como muitas outras no Brasil, foi formada e expandida, muitas vezes, sem planejamento de infraestrutura. Por isso, o desejo de expansão da cidade passava pela necessidade de se evitar uma grande concentração demográfica no antigo núcleo central e todos os problemas urbanos vinculados ao passado colonial, como a mobilidade urbana e os flagelos epidêmicos de saúde pública. Todos esses fatores proporcionaram importantes reformas urbanas neste período, estabelecendo assim, uma espécie de inserção da cidade de Vitória no que se poderia chamar de belle époque capixaba[17]. Entre outras transformações, a instalação dos serviços de abastecimento de água, esgoto e energia elétrica, implantação de um novo modal de transporte público, os bondes elétricos, criação de espaços públicos, a reorganização da administração e dos serviços públicos, o que incluiu uma ampla reforma do sistema educacional, a criação do Arquivo Público Estadual e da própria Prefeitura Municipal de Vitória[18], dentre eles e, parte do objeto central deste trabalho, a criação do cemitério público no Sítio Santo Antônio, no arrabalde da cidade.

Do Cemitério do Morro do Pinto ao Cemitério de Santo Antônio: da forte segregação ao rápido esgotamento

O Sítio Santo Antônio já havia sido objeto de negociação do Estado desde 1890, quando foi adquirido pela administração pública e teve parte de sua área destinada a um projeto de modernização de um antigo cemitério de vítimas de epidemias na cidade desde a década de 1850. Contudo, tratava-se de um local de difícil acesso pelo terreno encharcado que, pelo menos até 1894, apenas se alcançava por meio de pequenas embarcações.

O cemitério criado remotamente neste local ocupava uma elevação natural conhecida até os dias de hoje como Morro do Pinto. Sem um nome oficial que o designasse, o dito “cemitério do Morro do Pinto” passou a ser a maior expressão capixaba das medidas emergenciais contra a epidemia de febre amarela da década de 1850 e, ainda, o primeiro cemitério extramuros que teve funcionamento em Vitória e o primeiro administrado diretamente pelo Estado. Mas o desejo de construir um cemitério fora dos limites da cidade dependia da existência de um bom acesso a ele e, como isso era um problema no caso do Morro do Pinto, pois ele era o destino apenas dos corpos “perigosos” das epidemias e de outros grupos indesejados da sociedade.

No mesmo período, uma outra experiência pública de administração cemiterial também se desenvolvia no centro da cidade: o cemitério do Convento de São Francisco. Tratava-se de um antigo Convento, construído em 1591, que, no ano de 1856, teve uma parte do seu terreno cedido ao governo para que se instalasse provisoriamente um cemitério público, já que as igrejas já não possuíam condições de sepultar o grande número de vítimas da epidemia, que se abatia mesmo entre as elites (que não cogitavam sepultamentos no Morro do Pinto).

O remoto território cemiterial de Santo Antônio, onde estava instalado o cemitério do Morro do Pinto, de características claramente segregatórias, somente teve sua importância ampliada com as reformas do governo de Jerônimo Monteiro, quando o acesso por terra estava concluído e quando foi criada uma nova necrópole, adjacente às antigas áreas cemiteriais.

Gradualmente, os cemitérios administrados pelas igrejas foram sendo desativados e substituídos pelos de natureza pública durante este período em diferentes cidades no Brasil, conforme estes se estruturavam a estas novas lógicas territoriais. Embora essa transição tenha sido pacífica na cidade de Vitória, em outras cidades ocorreu de forma conflituosa, como indicam outros estudos[19].

Em maio de 1913, o ex-presidente do Estado Jerônimo Monteiro, apresentou um relatório ao legislativo estadual, abordando os negócios do Estado entre 1909 e 1912[20]. Entre os destaques do relatório, estava a criação de um novo espaço cemiterial no sítio Santo Antônio. Os esforços para a construção desse novo cemitério remontam ao antigo cemitério, criado na segunda metade do século XIX, que coexistiu com o novo espaço por algumas décadas.

No sentido de tentar consolidar um padrão atualizado de urbanismo, o relatório afirmava que o cemitério foi construído em uma área adequada e que atendeu plenamente às exigências de higiene moderna. Segundo Novaes[21], a solenidade de bênção da inauguração do cemitério de Santo Antônio ocorreu em 1º de maio de 1912, com a presença do bispo Dom Fernando de Sousa Monteiro e do próprio presidente Jerônimo Monteiro, sendo a administração do cemitério entregue à Prefeitura Municipal, mas somente começaram a ocorrer os primeiros enterros no local a partir de 1º de maio de 1912[22]. Com a inauguração do novo cemitério, todos os antigos e pequenos cemitérios no centro da capital foram suprimidos. Suas localizações podem ser vistas no mapa abaixo (Fig. 1).

Fig. 1. Mapa adaptado planta da cidade de Vitória, capital da Província do Espírito Santo, junho de 1873. © Paloma Barcelos Teixeira e Igor Martins Medeiros Robaina.

Como um dos aspectos da modernização, a tração elétrica dos bondes foi oficialmente inaugurada em 21 de junho de 1911 e os bondes até o cemitério de Santo Antônio foram implementados pouco depois, em 1912, quando um vagão transportava o ataúde e outro os acompanhantes, partindo da Igreja Matriz da cidade de Vitória até o Cemitério. Embora o uso do Sítio Santo Antônio como território cemiterial não tenha sido, propriamente, inaugurado por Jerônimo Monteiro, o sepultamento inaugural com o uso do bonde funerário (Fig. 2), em 08 de maio de 1912, não resta dúvidas, foi um evento de sua administração.

Fig. 2. Vagão funerário dos bondes elétricos implementados na cidade de Vitória em 1912. Reprodução da Coleção Jerônimo Monteiro do Arquivo Público do Estado do Espírito Santo.

Enquanto isso, o propósito de segregação do antigo cemitério do Morro do Pinto continuava cumprindo o objetivo para o que havia sido criado. A questão das vítimas das epidemias, por exemplo, que era anterior à criação do novo cemitério, seguiria sendo um problema. Em 6 de junho de 1914[23], o então prefeito determinou, por meio de ofício preservado no Arquivo Público de Vitória, ao administrador de cemitérios públicos da capital, que não consentisse que fossem sepultados variolosos “no novo cemitério e nos das irmandades, devendo esses enterramentos serem efetuados no antigo cemitério de Santo Antônio”, aquele que, agora designado como “antigo”, continuava sem nome, no Morro do Pinto.

Na fotografia (Fig. 3), podemos observar uma imagem a partir do Morro do Pinto, na qual foram registradas sepulturas aos pés do fotógrafo. Essas sepulturas são do “antigo cemitério”, que foi claramente criado com o objetivo de impor medidas segregatórias. Com o intuito de registrar o cemitério de Santo Antônio vazio e recém-murado, essa fotografia foi tirada em 1912. O que chama a atenção é que ela se constitui como o único registro fotográfico do “antigo cemitério” existente nos arquivos públicos do Estado do Espírito Santo.

Fig. 3. Área definida para o novo cemitério de Santo Antônio, vista a partir do antigo cemitério de Santo Antônio, localizado no Morro do Pinto em 1912. Reprodução da Coleção Jerônimo Monteiro do Arquivo Público do Estado do Espírito Santo.

Logo após os atos de transferência da administração do cemitério para o município, foi publicado o Decreto Municipal nº 9[24], que regulamentava as disposições da Lei 67 de 30 de março de 1912. O decreto, assinado pelo prefeito Wlademiro Fradesco da Silveira em 6 de maio de 1912, declarava que os indigentes, os pobres falecidos em hospitais da Santa Casa de Misericórdia, enfermarias governamentais ou prisões e corpos enviados pelas autoridades policiais seriam enterrados gratuitamente no antigo Cemitério de Santo Antônio.

Isso estabelece que, durante os primeiros anos de existência do novo cemitério público de Santo Antônio, o antigo Cemitério de Santo Antônio, localizado no Morro do Pinto, continuou a ser usado para segregação (população pobre, doenças contagiosas, indigentes). Não existem registros documentais de quando deixou de ser uma área destinada às práticas cemiteriais. Em 17 de setembro de 1912, o jornal O Diário[25] publicou um obituário coletivo na seção “Atos da Prefeitura”, na página 1, apresentando dois grupos de pessoas: o primeiro sepultado no novo cemitério de Santo Antônio durante o mês de agosto, o segundo de pessoas sepultadas no “cemitério dos indigentes”, em Santo Antônio, durante o mesmo mês.

A Lei Municipal 276[26], que instituiu o Código de Posturas Municipais de 1926, não fez mais referência ao “antigo cemitério”. Não é possível afirmar com certeza, por meio da leitura desta lei, se o “antigo cemitério” já estava inativo nessa época. Posteriormente, não foram localizadas outras menções nominais a ele e o que se sabe é que foi tomado por ocupações irregulares e, hoje, um bairro modesto está estabelecido sobre sua área original.

Temos, por fim, condições de compreender que o Sítio Santo Antônio começou a ser ocupado por cemitérios na segunda metade do século XIX, quando foi realizado, pela primeira vez, o projeto de um cemitério extramuros na cidade. A importância das necrópoles instaladas na região cresceu gradualmente até os últimos anos do mesmo século XIX. E, por fim, a inauguração do novo Cemitério de Santo Antônio, em 1912, cuja administração foi transferida para a municipalidade, foi uma confirmação da escolha da região para a atividade funerária.

Na década seguinte, o Cemitério de Santo Antônio como cemitério público e laico, sob a administração municipal desde seu nascimento, foi dividido em seis planos, acolhendo, inicialmente, pessoas de todas as origens, religiões e classes sociais. Justamente por essa característica, os cemitérios antigos criados desde a segunda metade do século XIX, fundados sempre em caráter segregatório, notadamente de vítimas de epidemias e de protestantes, começaram lentamente a cair em desuso.

O advento da linha de bondes e a conclusão dos acessos terrestres ao centro da cidade foram fundamentais para a expansão da cidade, sendo vetores da criação de novos bairros, desaparecimento de áreas rurais e expansão urbana. As áreas abandonadas dos antigos cemitérios foram ocupadas por edificações urbanas, que alcançava a região rapidamente.

Contudo, a gestão do novo espaço cemiterial de Santo Antônio ainda se apoiava na matriz oitocentista de cemitério monumental, fundada na perpetuidade das sepulturas que articulava patrimônio funerário e memória. Assim, em poucas décadas se evidenciava o acelerado esgotamento da área do cemitério que aos poucos substituíam as sepulturas temporárias de baixo custo por mausoléus e memoriais perpétuos. Igualmente, o fenômeno se refletia nas camadas sociais presentes no cemitério que, cada vez mais, representava as elites da cidade.

Em pouco tempo foi necessária uma nova solução que não somente acolhesse os cadáveres epidêmicos ou protestantes, mas que pudesse reunir todos os pobres de um lugar para enterrar os seus familiares. A estes deveria ser destinado um grande espaço com rotatividade suficiente para garantir a relação entre população e área cemiterial mínima necessária, já que os cemitérios do centro da cidade, administrados pela Igreja e por suas confrarias, estavam definitivamente fora de uso, sendo, inclusive, gradualmente removidos e reocupados no espaço urbano. Nesse contexto, as dinâmicas urbanas da cidade, que buscava novos vetores de crescimento, necessitava e comportaria a presença de mais um cemitério público.

Sem status na vida, sem status na morte: o cemitério de Boa Vista

Foi no governo de Octavio Índio, entre maio de 1924 e maio 1928, que foi decretado o fim definitivo da necrópole pública do Convento de São Francisco, que funcionava desde 1856, e que, à época, já não realizava sepultamentos novos. Consequência deste processo, foi a construção de um monumento no pátio da edificação: uma alta coluna sobre a qual se encontra, até hoje, uma imagem de Nossa Senhora da Imaculada Conceição. A estrutura abriga os ossos retirados do antigo cemitério do Convento de São Francisco. Além disso, uma placa de aço convocava a seguinte apelação: “Oh! Vigem Imaculada, velai os que ainda aqui esperam a ressureição”. Assim, por vontade de algumas famílias, os restos mortais de uma parte dos sepultados foram transferidos para o cemitério público novo de Santo Antônio, ficando os demais recolhidos no memorial erguido.

Em 31 de dezembro de 1927, foi apresentado um relatório à Câmara Municipal de Vitória abordando melhorias urbanas. A importância, o impacto e a força políticas destas mudanças foram tão grandes que o relatório foi publicado integralmente no jornal Diário da Manhã[27]. No que se refere aos cemitérios, o governo de Octávio Índio ordenou em 1925 a remoção de restos mortais e peças de mármores das sepulturas abandonadas dos antigos cemitérios localizados no Morro de São Francisco (junto ao Convento), para o novo cemitério público de Santo Antônio ou para as novas necrópoles das associações religiosas a que pertenciam.

No entanto, o relatório já apontava a criação de um novo cemitério em Vitória, a ser implantado na região de Maruípe. A antiga Fazenda Maruhype foi adquirida pelo poder público e parcelada a partir de 1897. Havia planos para a destinação de vários equipamentos públicos de grande porte, como o cemitério, o Quartel do Esquadrão da Cavalaria (atual Quartel do Comando Geral da Polícia Militar), o Hospital dos Tuberculosos do ES (atual Escola de Medicina da Universidade Federal do Espírito Santo) e o Horto Municipal.

Pelo menos desde 1926, o poder público trabalhava para conseguir a aprovação da presidência do Estado para a localização do novo cemitério. No Arquivo Público do Município, existem registros do prefeito Octávio Índio solicitando ao presidente do Estado, em 1926, a cessão de uma área de 2 alqueires de terra na Fazenda Maruhype para construir um horto florestal e um cemitério municipal. Em 1927, a prefeitura pleiteava que seria melhor construir o cemitério no alto do morro da fazenda. Quando Octávio Índio deixou o cargo de prefeito, ele registrou que havia conseguido uma área de 40.000 m2 de terra na Fazenda Maruhype para construir o cemitério, com um projeto já elaborado pelo diretor de obras do Estado[28].

Contudo, nada foi construído no local até 1950, enquanto se saturava a área do cemitério de Santo Antônio pela questão patrimonial da perpetuidade das sepulturas das elites vitorienses. A aquisição do terreno de Maruípe ainda estava em andamento, depois de décadas, por meio de processos de desapropriação ou compras de áreas privadas, enquanto a cidade já crescia naquela direção, com projetos de habitação e de instalação de outros equipamentos públicos.

Durante o governo de Armando Duarte Rabello (entre maio de 1953 e janeiro de 1955), foi apresentado um relatório ao Conselho Municipal de Vitória, em 1954, que listava as obras que seriam realizadas nos anos seguintes. Assim, foram listadas 36 obras, sendo a trigésima quinta a remodelação do Cemitério de Santo Antônio e a última, a construção de um novo cemitério em Mulembá (era como se conhecia uma das subdivisões da fazenda Maruhype). No entanto, quase 30 anos depois, o cemitério ainda não havia sido construído.

Só a partir de 1957, foram verificados alguns ofícios, entre os expedidos pela gestão de Mário Gurgel como prefeito de Vitória (entre junho de 1957 até agosto de 1958)[29], que fazem referência ao projeto do Cemitério de Boa Vista, em Mulembá/Maruípe. Em 1958, a prefeitura concretizava a execução das obras. Em 14 de março, Mário Gurgel solicita imediatas providências para a conclusão do “prédio da administração do cemitério público de Mulembá” e, em 27 do mesmo mês, recomenda a “remoção das barracas existentes na área do cemitério de Boa Vista, em Maruípe”, após entendimento com os interessados.

Estes são os dois únicos registros fotográficos do Cemitério de Boa Vista (Fig. 4), em Maruípe, datados de 1958, presentes no acervo de imagens do Arquivo Público do Município. Com base nas fontes de pesquisa, acreditamos que a organização do espaço cemiterial em Vitória foi finalmente concluída com a inauguração do Cemitério Público de Maruípe, que ocorreu entre o segundo semestre de 1958 e o primeiro semestre de 1959. Esse cemitério desempenhou um papel que o Cemitério de Santo Antônio havia abandonado gradualmente: ser um cemitério público propriamente dito, sem perpetuidades, onde todos os falecidos eram submetidos às mesmas regras de memória e esquecimento[30].

Fig. 4. Obras iniciais no cemitério de Boa Vista, no bairro de Maruípe em 1958. Arquivo Público do Município de Vitória.

A tardia construção do cemitério de Boa Vista ocorre quando já se encontram consolidadas novas ideias de desenvolvimento urbano e de sanitarismo. Assim, a execução do projeto deste cemitério a partir da década de 1950 e suas ampliações posteriores estão mais desligadas das problematizações no âmbito da saúde pública e mais aproximadas da necessidade prática de garantir um equipamento, inserido na cidade, que fosse capaz de absorver a necessidade da população crescente por áreas de manejo de cadáveres e realização dos seus ritos fúnebres.

Também é importante registrar que neste período entre a década de 1940 e 1960, a cidade de Vitória passava por profundas transformações urbanas e econômicas decorrentes da dinâmica industrial e portuária provenientes da exploração, transformação e exportação de minério de ferro. Assim, por meio de uma série de esforços do governo brasileiro e de fortes investimentos internacionais foi criado o Complexo Portuário de Tubarão, que se converteu em um dos maiores portos de minério do mundo e gerando uma série de pressões em termos espaciais para a alocação de equipamentos ligados às lógicas industriais e logísticas na cidade de Vitória e nos municípios vizinhos.

No fim da década de 1980, quando a necrópole de Santo Antônio já estava integralmente ocupada por perpetuidades, a administração municipal começou a se preocupar em ampliar o território do cemitério de Boa Vista, expandindo-o para onde houvesse possibilidade. Em 1987, foi sentenciado a um processo judicial de desapropriação que dirimiu uma disputa entre a Prefeitura e os herdeiros de uma antiga proprietária de uma área de 14.436,69 m2 vizinha ao Cemitério. Posteriormente, em 1989, uma área menor, mas também contígua ao plano original, medindo 7.080 m2, foi anexada após um acordo amigável entre seus proprietários e a Prefeitura. Assim, o cemitério de Boa Vista atingiu sua área atual de cerca de 91.000 m2, consolidando o processo de ocupação do crescimento urbano da cidade de Vitória.

No outro extremo da cidade, os cemitérios do bairro de Santo Antônio formam um complexo de cemitérios representantes daqueles existentes, anteriormente, no interior do tecido urbano do centro da cidade, que remontavam o período da Colônia e do Império. Eles eram administrados por diferentes igrejas, como o cemitério da Irmandade do Santíssimo Sacramento, que era gerenciado pela Igreja Matriz de Vitória; o de Santo Antônio dos Pobres, vinculado ao Convento São Francisco; o Cemitério da Irmandade da Boa Morte e Assunção, atrelado a Igreja de São Gonçalo e, finalmente, o da Irmandade de São Benedito, que era administrado pela Igreja de Nossa Senhora do Rosário. Todos esses cemitérios passaram a estar representados em diferentes partes do complexo atual de Santo Antônio, que costuma ser considerado um único cemitério público, por revelar uma harmonia (inclusive espacial) com os cemitérios privados das irmandades religiosas (Fig. 5).

Fig. 5. Mapa dos cemitérios atuais e antigos da cidade de Vitória. © Paloma Barcelos Teixeira e Igor Martins Medeiros Robaina.

Considerações Finais

Este estudo forneceu evidências que sugerem considerações sobre a cidade de Vitória no século XX. A primeira delas é que os espaços cemiteriais passaram por uma série de transformações decorrentes do espírito modernista, republicano e higienista aplicados ao urbano em períodos concomitantes a outras importantes cidades brasileiras. A segunda é que o Estado teve uma participação central, por meio de ações municipais e do governo estadual, em atuar diretamente sobre uma lógica de ordenamento territorial. Esta ação removeu os cemitérios da gestão da Igreja Católica e, ao mesmo tempo, criou cemitérios laicos em espaços periféricos que impulsionaram a expansão urbana da cidade. No caso dos cemitérios públicos de Santo Antônio e da Boa Vista, os dois maiores da cidade, sua presença no território resultou na abertura de vias públicas, na criação de meios de transporte, na instalação de equipamentos urbanos e de áreas residenciais. Além disso, a rápida expansão urbana, realizada de maneira desordenada, no caso do bairro de Santo Antônio, acabou por avançar sobre as áreas dos antigos cemitérios, que poderiam ter sido patrimonializados, mas que desapareceram como paisagem e memória material.

Nesse sentido, a cidade de Vitória se consolidou, no século XX, como um importante núcleo metropolitano no Brasil. As investigações a partir dos seus cemitérios abrem uma série de possibilidades para refletirmos essa realidade em outros espaços urbanos no mundo ibero-americano, especialmente na costa atlântica, uma vez que as relações entre os cemitérios, os planos urbanísticos, a expansão do tecido urbano e as diferentes dinâmicas socioespaciais revelam as maneiras como as sociedades pensam a morte, sob o aspecto geográfico. Desta forma, destacamos três temas dentro de uma agenda de pesquisa para a região, que são:

  1. Compreensão do papel dos cemitérios na urbanização: no sentido de explorar o modo como a transformação dos cemitérios, de locais de sepultamento religioso para espaços geridos pelo Estado, reflete a transição para a modernidade, no conjunto das cidades ibero-americanas. O estudo dos cemitérios possibilita uma melhor compreensão sobre como o seu planejamento e sua gestão territorial foram integrados à urbanização e ao desenvolvimento das cidades, e como isso influenciou diferentes expansões urbanas, apesar dos poucos estudos e exemplos sobre este tópico no Brasil e na região.
  2. Visão sobre a segregação social na morte: a análise dos cemitérios no espaço ibero-americano nos ajuda a entender como as diferenças de classes sociais e econômicas podem ser refletidas na morte. O exemplo da Vitória imperial, no caso do cemitério do Morro do Pinto, que foi projetado para receber os corpos das epidemias, dos indigentes e dos pobres, aponta para práticas segregatórias que ainda perduram de algum modo nos sepultamentos atuais, como aqueles que são realizados no Cemitério da Boa Vista, instalado no período republicano. Esse aspecto é relevante para estudos sobre desigualdade social e práticas de exclusão no espaço ibero-americano. Além disso, recortes temporais anteriores carecem de análises e de compreensão mais profunda quanto às dinâmicas cemiteriais, especialmente vinculadas à espacialidade urbana: é o caso dos recortes marcados pela escravidão no circuito atlântico ou de outros grupos marginalizados e estigmatizados (protestantes, judeus, ciganos).
  3. Reflexões sobre a gestão do patrimônio cemiterial: o modo como os antigos cemitérios de Vitória foram gradualmente incorporados (e algumas vezes suprimidos) pela expansão urbana desordenada aponta para a necessidade de uma abordagem mais cuidadosa na gestão e preservação dos espaços cemiteriais. Esses lugares são portadores de uma rica memória histórica e cultural, por isso, seu estudo pode contribuir para a formulação de políticas de preservação do patrimônio em outras cidades ibero-americanas.

Este conjunto de reflexões revela que os estudos cemiteriais ainda carregam estigmas dentro dos estudos urbanos. Contudo, a partir de diferentes possibilidades de relações, perspectivas e escalas, essas pesquisas possibilitam explicar não somente o cemitério como um lugar, ao mesmo tempo, concreto e simbólico, mas também, como sendo resultado de uma rede de relações no território, que torna possível compreender as dinâmicas urbanas, suas formas, estruturas e processos, em relação ao passado e, também, aos horizontes futuros.

Referências

Fontes documentais

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[1] Philippe Ariès, L’homme devant la mort (Paris: Média Diffusion, 2014), 670; Douglas Davies, A brief history of death (Jersey city: John Wiley & Sons, 2008), 208; Michel Vovelle, “Les attitudes devant la mort: problèmes de méthode, approches et lectures différentes,” Histoire, Sciences Sociales, no. 1 (1976): 120-132, https://doi.org/10.3406/ahess.1976.293702.

[2] Roberto da Matta, A casa e a rua (Rio de Janeiro: Rocco, 1997), 164; João José Reis, A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX (São Paulo: Companhia das Letras, 1991), 448; Clarival Valladares, Arte e sociedade nos cemitérios brasileiros (Rio de Janeiro: Editora Imprensa Nacional, 1972), 1100.

[3] Associação brasileira de estudos cemiteriais, “A ABEC,” consultado em 20 de fevereiro de 2023, https://www.estudoscemiteriais.com.br/abec.

[4] Pierre Deffontaines, “Posições da Geografia Humana - Por que Geografia Humana?” Boletim Paulista de Geografia, no. 32 (1959): 03-16.

[5] Larry W. Price, “Some results and implications of a cemetery study,” The Professional Geographer, no. 4 (1966): 201-207, https://doi.org/10.1111/j.0033-0124.1966.00201.x; Ruth Mcmanus, Death in a global age (Londres: Bloomsbury Publishing, 2017), 208.

[6] Antônio Pegaia, “Estudo geográfico dos cemitérios de São Paulo.” Boletim Paulista de Geografia, no. 44 (1967): 103-120.

[7] Eduardo Coelho Morgado Rezende, O céu aberto na terra, uma leitura dos cemitérios na geografia urbana de São Paulo (São Paulo: Necrópolis, 2006), 184.

[8] Paloma Barcelos Teixeira, “Sete Palmos de Terra: historiografia e desigualdade na formação territorial dos cemitérios de Vitória/ES” (dissertação de mestrado, Universidade Federal do Espírito Santo, 2022), 158.

[9] José Oliveira, História do Estado do Espírito Santo (Vitória: Sec. da Cultura e da Educação, 2008), 727.

[10] Sebastião Pimentel Franco, André Fraga Lopes, e Luiz Felipe Sias Franco “Gripe espanhola no Espírito Santo (1918-1919): alguns apontamentos,” Revista Dimensões 2, no. 36 (2016): 404-426.

[11] Carlos Teixeira Campos Júnior, O novo arrabalde (Vitória: PMV, Secretaria Municipal de Cultura e Turismo, 1996), 250.

[12] Beatriz Piccolotto Siqueira Bueno, “A cidade como negócio: mercado imobiliário rentista, projetos e processo de produção do Centro Velho de São Paulo do século XIX à Lei do Inquilinato (1809-1942)” (tese livre docência, Universidade de São Paulo, 2018), 359.

[13] Carl Sauer, “Foreword to Historical Geography,” Annals of the Association of American Geographers, no. 1 (1941): 1-24, https://doi.org/10.1080/00045604109357211.

[14] Maurício de Almeida Abreu, “Sobre a memória das cidades,” Revista Território, no. 4 (1998): 5-26.

[15] Rui Erthal, “Geografia histórica - considerações,” GEOgraphia, no. 9 (2003): 29-39.

[16] Reis, A morte é uma festa, 448.

[17] De acordo com o site oficial do Governo do Espírito Santo, o gentílico “capixaba” tem origem na língua tupi-guarani, que era falada pelos índios que habitavam a região. Atualmente, o termo é usado para se referir a todos os nascidos no Estado e é marca registrada da identidade cultural. Governo do Estado do Espírito Santo, “Origem do termo Capixaba,” consultado em 27 de fevereiro de 2023, https://www.es.gov.br/historia/povo-capixaba.

[18] Maria Stella de Novaes, Jerônimo Monteiro: sua vida e obra (Vitória: Arquivo Público do Estado do Espírito Santo, 2017), 340.

[19] Reis, A morte é uma festa, 448.

[20] Jerônimo de Souza Monteiro, Exposição sobre os negócios do Estado no quadriênio 1909 a 1912, janeiro de 1913, M 353.98152, Coleção Jerônimo Monteiro, Arquivo Público do Estado do Espírito Santo, Vitória.

[21] Novaes, Jerônimo Monteiro: sua vida e obra, 340.

[22] Souza Monteiro, Exposição sobre os negócios do Estado no quadriênio 1909 a 1912.

[23] Ofício da Prefeitura Municipal de Vitória, junho de 1914, D 241.364, Coleção prefeito Henrique de Novaes, Arquivo Público do Município de Vitória, Vitória.

[24] Decreto Municipal n° 9 de 06 de maio de 1912 que regulamenta a matéria da Lei n° 67 de 30 de março de 1912, março de 1912, M 353. 99732, Coleção Jerônimo Monteiro, Arquivo Público do Estado do Espírito Santo.

[25] Redação o diário da manhã, “Seção obituários,” O Diário Da Manhã, 17 de setembro de 1912, 17.

[26] Lei Municipal 276 que Institui o Código de Posturas Municipais de 1926, março de 1926, F 112.241, Coleção prefeito Octávio Índio do Brazil Peixoto. Arquivo Público do Município de Vitória (APMV). Vitória.

[27] Redação o diário da manhã, “Seção Relatório dedicado à Câmara Municipal de Vitória,” O Diário Da Manhã, 31 de dezembro de 1927, 04.

[28] Octávio Índio do Brazil Peixoto, Relatório à Câmara Municipal de Vitória, janeiro de 1928, G 331.104, Coleção prefeito Octávio Índio do Brazil Peixoto. Arquivo Público do Município de Vitória (APMV). Vitória.

[29] Ofício da Prefeitura Municipal de Vitória no. 28, junho de 1958, M 104.335, Coleção prefeito Mário Gurgel, Arquivo Público do Município de Vitória, Vitória.

[30] Barcelos Teixeira, “Sete Palmos de Terra: historiografia e desigualdade na formação territorial dos cemitérios de Vitória/ES,” 158.